e medos.

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A garota acorda. Sem ainda mal ter se levantado da cama, sente suas costas doerem, como se uma criatura sem face e medos estivesse escorada em seus ombros, a puxando para baixo em direção ao magma da terra.

- Sem face e medos? - perguntou ela.

Sim, criança, todos nós precisamos de algo para temer quando nos olharmos no espelho. Sem face, o que teríamos? Além de um corpo repleto de dores e prazeres inalcançáveis?

- Sem face e medos. - aceitou.

A garota decide, enfim, colocar seus pés para fora da cama e respirar fundo, tentando lembrar quais tarefas estavam em seu encalço, a seguindo, pequenos monstrinhos de responsabilidades que se acumulavam um pouco mais a cada dia que passava. Lavar suas roupas? Colocar em ordem a pilha de papel acinzentado que ficava em cima de sua escrivaninha? Ou quem sabe, ficar dez minutos sob o sol? Aproveitando a brisa mais fresca que uma manhã pode proporcionar? Não, não. Isso é coisa para pessoas que possuem prazeres alcançáveis, o que ela não tinha no momento.

A primeira tarefa que decide completar deveria ser a mais simples delas, porém tudo parece difícil com a criatura ali, a deixando densa como uma bola de metal quase implorando para afundar no chão. Entrou em seu banheiro, sem direcionar nem uma olhadela para o espelho, e foi até a pia para escovar seus dentes. Ao concluir a tarefa, saiu rapidamente do local e deixou seu olhar cair sobre sua escrivaninha. Caminhou em direção a sua cama e deitou-se.

Era lamentável.

A garota, até aquele que seria o sétimo ou oitavo dia de pura procrastinação, tinha manchas amarronzadas embaixo dos olhos e tufos de cabelo e poeira espalhados pelo chão de seu quarto. Não havia saído do cômodo para nenhum lugar além da cozinha, para preparar macarrão instantâneo e não se deixar apenas morrer de fome. Não conseguia fazer algo para mudar aquela deplorável situação, tudo que lhe cabia em mãos - levando em consideração a dor quase dilacerante que a garota sentia em seu peito - era esperar seu cérebro decidir que quer ser feliz novamente. Ah, e quando isso acontecer, tirem as crianças da sala! Os sonhos finalmente serão alcançáveis e a criatura mudará de aparência, se tornando quase uma amiga a encorajando a fazer e falar aquilo qualquer coisa que sentir vontade, mesmo que irritadiça ocasionalmente. Ah, mal podia esperar para sentir aquilo novamente, todavia parecia tão longe. Tão irreal.

A garota, então, fez aquilo que estava ao seu alcance, fechou seus olhos e adormeceu novamente.

E a criatura?

Bom, agora tinha manchas amarronzadas embaixo dos olhos e tufos de cabelo e poeira espalhados pelo chão do quarto. 

Sem face.Where stories live. Discover now