APENAS

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Acordo seguindo a minha vida, indo até a cozinha pegando uma torrada e colocando ração para Nadameru, até porque, se eu não colocar é capaz de esquecerem dela também.

—Bom dia — mamãe me cumprimenta com seu tom matinal de sempre, tomando um Danone de morango e relaxando sob a cadeira.

—Bom dia — murmuro assistindo meu gato comer a ração satisfeito.

—bom dia, filho — meu estômago embrulha com a voz grossa atrás de mim e o jeito que me chamou me fez querer vomitar.

Filho. Agora me chamar com essa leveza parece fácil para ele, mesmo depois de ter virado as costas para mim quando eu mais precisava na infância, quando a vovó morreu ele sequer chorou e sequer me acolheu quando eu chorei.

Ignoro seu comentário e saio andando rumo á escola, nada é muito longe da minha casa, a escola é perto, a clínica são 6 quadras daqui e para ir no mercadinho são só 2 ruas.

Eu chego em menos de 10 minutos no colégio e percebo que está bastante vazia hoje, grande parte dos alunos já começaram a faltar por terem passado de ano, até Kenny faltou hoje.

Eu até faltaria se não tivesse o trabalho para entregar hoje e garantir pelo menos que passei em uma das 5 matérias que eu ainda não passei.

Entro na sala de aula e reparo nos poucos rostos conhecidos, Tolkien e Clyde que provavelmente só vieram para ficar zoando pelos corredores, Butters que está bastante concentrado no seu dever de casa e o filha da puta do Broflovski que está acenando para eu sentar perto dele.

—Bom dia Stan — ele abre aquele sorriso estúpido que me deixa nervoso no fervor da matéria bruta do ódio.

Que sorriso radiante, odeio tanta luz essas horas da manhã.

—Bom dia — sou seco e logo me sento na cadeira abrindo meu caderno pronto para entregar o trabalho para a professora.

—Eu queria te... — o ruivo parece um pouco tímido — Agradecer pela ajuda com a tarefa, salvou minha pele cara — sinto minhas bochechas corarem.

—De nada...

—Seu cabelo está bonito hoje — Kyle ri e volta a mexer nas próprias anotações.

...

–DA PRA ACREDITAR? — grito com raiva vendo John me assistir atentamente — ELE É INACREDITÁVEL — bato o punho contra a mesa do psicólogo e com os dentes cerrados — "SEU CABELO ESTÁ BONITO HOJE" — imito a voz dele.

—Stan — ele tenta chamar minha atenção.

—QUAL O PROBLEMA DELE? — berro com raiva andando inquieto da sala — QUEM ELE PENSA QUE É PRA FICAR DIRIGINDO A PALAVRA Á MIM? – dito de maneira irritada.

—Stan — novamente, tentou me chamar, mas, é em vão.

—TÁ BOM QUE OS CACHOS DELE SÃO MELHORES QUE MEU CABELO PRETO OLEOSO — continuo andando pela sala — MAS ISSO NÃO DÁ PARA ELE O DIREITO DE FALAR DO MEU CABELO SÓ PARA ME PROVOCAR.

—Stan — finalmente olho para ele.

—o que é? — resmungo irritado me sentando na cadeira e olhando para o psicólogo.

Os olhos de John estão sugestivos, parecem estar pensando em como me falar determinada coisa e me sinto um pouco tenso.

—Pare de ficar fugindo dos próprios sentimentos — congelo olhando para ele.

—Eu sei que eu tenho inveja do Kyle, mas — ele me interrompe.

—Não, Stan, você está apaixonado por Kyle — meu coração tropeça, batendo forte contra o peito, me deixando aflito e ansioso — você é apaixonado por ele, mas, seu pai sempre lhe disse para ser homem e não um — chega minha vez de o interromper.

—Viadinho... — engulo seco.

—Sim, mas, você ama Kyle, está apaixonado por ele então disfarça suas emoções as substituindo por raiva e inveja — sinto tudo se encaixar como peças de vidro e elas me cortam.

—Não... não pode ser — murmuro em choque.

John tem os olhos atentos e carinhosos, sua energia emana uma compreensão inexplicável, eu tento lutar contra a vontade de chorar.

—Lembra do que eu disse á você na primeira sessão de terapia quando você me disse que estava tudo bem é apenas se sentia triste? — perguntou.

Não foi preciso eu forçar o cérebro para lembrar, eu tive apenas que engolir seco pensando em como fazer esse tópico sensível sair da minha boca.

—"Fugir de um sentimento que continua voltando é uma ideia terrível,  é como tentar fugir de si mesmo porque se uma angústia persiste" — pauso para respirar um pouco — "é sinal que não é mais só uma angústia e sim uma parte fundamental de você" — foi desse jeito que resolvi persistir na terapia por mais caro que fosse, quero melhorar, quero entender esse sentimento, aceitá-lo como uma parte de mim e então supera-lo.

—É a mesma coisa agora — aquilo dói — a gente precisa dar atenção para nossas aflições — sugeriu ele, direto como um cirurgião.

—Mas... não faz sentido... — o olho com os olhos marejados.

—a gente precisa dar atenção para nossas aflições — repetiu — especialmente quando não fazem sentido, porque para ser real não precisa fazer sentido — eu não poderia, não queria aceitar, era difícil demais de digerir — não fuja de si mesmo, Stan.

Fui para casa com o peso de mil pedras sob minhas costas, eu desde o começo sabia que era verdade, a verdade mais dolorosa que meu peito poderia suportar.

"Ele é bonito"
"Ele é ridículo"
"Ele é inteligente"
"Ele está apenas provocando você"
"Ele é fofo"
"Ele está só querendo chamar atenção".

Meus pensamentos sempre substituíam essa verdade dolorosa por uma mentira mais bonita, colorida, uma que agradasse meu coração fraco montado por uma crença ridícula.

Tem gente que diz que quando a dor é muito grande ou muito complexa é preciso dar tempo ao tempo...

Mas, a verdade é que isso é mentira, as vezes, nossos demônios não vão embora, para alguns de nós o tempo é a tortura, o lembrete irritante que amanhã vem outro dia e com ele, os mesmos pensamentos e dores.

Eu tentei em enganar, tentei acreditar em uma mentira para que a vida fosse menos dolorosa, quando sempre queria que Kyle reparasse em mim, me olhasse nos olhos e me elogiasse, exatamente como fez hoje.

Isso dói.
Dói demais.

Acabo com a mente invadida, destruída como um cenário de guerra, chegando ao ápice do meu desespero, corro para o banheiro sentindo como se eu fosse morrer ali mesmo por isso. Por ser gay.

E então eu estou uma lâmina em mãos, o objeto trêmulo por conta do meu nervosismo, minha manga está arregaçada, mas, não consigo, me sinto fraco demais, fraco demais até para me machucar mais um pouco.

Eu me jogo no chão, chorando e tampando a boca para não soluçar alto, as lágrimas pingando pelo rosto, meus lábios abrindo para soltar um grito silencioso, me encolho no canto do chão, sem conseguir parar.

O mais triste de tudo é que eu me esforcei muito hoje, eu consegui tomar banho, escovar os dentes, fazer uma atividade, consegui pedir ajuda para o John mesmo hoje sendo quarta e nossa terapia só é nas terças, mas, mesmo assim...

Mesmo assim...

A PARTE DIFÍCIL Where stories live. Discover now