Os pássaros não cantam, eles gritam de dor.

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Porque há o direito ao grito.
Então eu grito.
- Clarice Lispector

Não acordo mais gritando.
Não sinto mais náusea ao ver sangue.
Não tenho tanto medo ao ficar só.
As sombras não me perseguem mais. Não me desculpo mais por ser quem eu sou.

Mas ainda assim...

Fico imediatamente assustada com o barulho de minha porta se abrindo bruscamente. Disfarço um arquejo, me sento na cama enquanto descanso as mãos sobre minhas coxas desnudas.

- Meu amor, você me chamou? - Ela me pergunta se aproximando da cama. Um pequeno sorriso se esboça em meus lábios, Simone está sempre tão atenta a tudo.

- Não, Sisa. Estava tentando dormir. - Respondi e ela suspirou demonstrando alivio.

Escutei seus passos leves enquanto ela vinha em minha direção. Pouco a pouco mais próxima de mim. Ela passou o colo de sua mão em minhas bochechas, sorrindo, mostrando suas lindas covinhas. Me deleitei em seu carinho, deixando minha cabeça se deitar para o lado.

- Está tudo bem? Precisa de algo, meu amor? - Sussurrou em tom baixo.

Simone estava deslumbrante naquela noite. Sempre estava. O cabelo negro longo estava solto, suas ondas caiam sobre seus ombros, percorriam suas curvas livres como um rio. Levei minhas mãos para sua cintura, e me levantei a puxando para perto de mim. Para mais perto de mim.

- Eu preciso de você mais pertinho... - Pedi carinhosamente, tocando suas bochechas rosadas, meus lábios tocaram os seus com amor, ofeguei puxando-a, desejando-a.

O céu cai aos pedaços do lado de fora. Meu choro poderia ser escutado a quilômetros, se alguém se dispusesse a ouvi-lo. A água gelada do chuveiro molha meu corpo encolhido no chão do box. Meus gritos reprimidos estilhaçam-me a cada segundo que passo sentada aqui. Recuso-me a escutar o celular tocando insistentemente na sala de estar. Os minutos parecem horas, a dor me corta aos pedaços. Me assusto quando escuto batidas na porta. Ele não havia saído? Pergunto-me mais uma vez.

- Soraya? - Uma voz feminina me chama. E me lembro de Simone.

Simone tem minha chave. Simone pode entrar a qualquer hora. Simone e eu temos uma reunião a noite. Simone e eu não podemos mais nos ver. Simone e eu devemos nos manter longe, Simone e eu...

- Soraya tudo bem? - Me chama novamente. - Posso entrar?

Não a respondo. Não consigo responder. Me sinto covarde por não gritar. Me sinto covarde por não conseguir conter o choro amargurado que continua tornando a sair de meu corpo. Me sinto covarde...

Escuto a tranca da porta estralar. Está aberta.

- Soraya? - Ela olha pela canto da porta, vejo sua feição preocupada pela espelho. - Meu Deus Soraya... O que aconteceu?

Pergunta entrando pelo banheiro, tento me levantar me segurando na parede, mas tudo que consigo é cair no chão liso novamente. Simone não se importa com a água do chuveiro. Não se importa com meu corpo molhado. Não se importa em se molhar. Não faz perguntas. Me abraça. Senta no box. Junta-se e se une a mim.
Não proíbe minhas lágrimas de rolarem.
Não sente medo de se afogar.

Simone se aproxima, seus braços me envolvendo num abraço caloroso. Sinto seu coração batendo forte, tão próximo do meu. Ela tenta me acalmar, suas palavras suaves e reconfortantes, mas eu não consigo parar de chorar. A dor é avassaladora, como se estivesse me consumindo por dentro, fazendo minha carne apodrecer cada vez mais rapidamente.

Me sinto frágil demais de baixo da água corrente, logo eu que fui forçada a ser tão forte sempre. Minhas lágrimas se misturam com a água que escorre pelo meu rosto, e percorre meu corpo. A dor no peito é insuportável, como se meu coração estivesse sendo esmagado lentamente. As paredes ao meu redor se misturam, se juntam, se tornam tudo uma só, e é como se tudo estivesse se desmoronando ao meu redor.

A água cessa, ela desliga o chuveiro e me segura mais forte em seus braços. Eu sei que ela não entende a situação, e é doloroso não conseguir explicar. Mas o simples gesto de Simone estar ali, me segurando fortemente, me dá um pouco de conforto. Aos poucos, a dor vai se transformando em um vazio, e eu consigo respirar um pouco mais de leve. Ela passa a mão em meu cabelo ensopado, em uma tentativa de arrumar os fios loiros, e dá um sorriso frágil. Simone continua me segurando, sem pressa alguma. Apenas sua presença tem o poder de me acalmar.

No silêncio do céu, a melodia se esvai,
Onde antes voavam cânticos de amor,
Agora, aves sem voz, sem alegria, sem pai,
Gritam em desespero, clamor.

As asas que um dia dançaram no ar,
Hoje tremem em angústia, em tormento,
Os pássaros, antes livres a voar,
Agora gemem em seu sofrimento.

Não são canções, são gritos, lamentos,
Nos céus onde a tristeza se aninha,
Onde ecoam dor, os passos do tempo,
Nenhuma nota, apenas a dor que não termina.

Ó aves que não cantam, mas clamam por paz,
Que voam sem as cores da alegria,
Que se perdem no eco do mundo incapaz,
De entender vossa dor, vossa agonia.

Que nossos corações possam compreender,
O grito dos pássaros, seu clamor profundo,
E que um dia possam novamente viver,
Sem gritos de dor, somente em paz no mundo.

Com sua ajuda, me levanto trêmula do chão do box. Me sinto tão culpada por deixá-la preocupada assim. Ela puxa a toalha que estava pendurada ao lado, e me ajuda a me enrolar. Respiro fundo e seguro a bainha da camiseta, fazendo um esforço para tira-la de meu corpo dolorido. Simone olha para o lado.

- Eu vou te dar licença ta bom So? - Ela susurra e da um passo para o lado. - Qualquer coisa eu...

- Não. - Eu interrompo sua fala, e percebo sua surpresa. - Desculpe... Por favor, não saia. - Me aproximo dela.

- Tudo bem. Mas você precisa se trocar... - Ela fala corando.

- Eu preciso de ajuda. - Susurro para a mulher, que assente e se aproxima novamente.

A toalha é pendurada no box. Meus olhos se unem quando sinto os dedos de Simone em minha barriga, em segundos ela retira a camiseta de meu corpo. Mantenho meus olhos fechados. Não quero que ela os veja com lágrimas novamente. Não quero ver sua expressão. Em minutos ela me me entrega a toalha, e eu me enrolo nela. Me surpreendo quando a morena passa seus braços ao meu redor, descanso minha cabeça em seu peito, sentindo sua pele gélida e sua roupa molhada.

- O que aconteceu So? - Me pergunta em tom baixo.

E eu me faço a mesma pergunta.

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FantasmasWhere stories live. Discover now