Quando tudo ficou vermelho

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Em um mundo preto em branco tudo parece ser sem graça, um universo onde não existe som ou palavras ditas parece ser um pouco desanimador. No entanto, é o mundo  em que eu vivo. Sou um morador nativo de Hellblack, o famoso Planeta Negro. Atualmente trabalho como jornalista investigativo, diante disso, tenho contato com autoridades da maioria das civilizações. E neste relato, descreverei como tudo o que era preto e branco se tornou num vermelho infindável. 

O assassinato de Letícia Macron, uma linda garota de 10 anos de idade, de cabelos escuros e pele cinzenta, se tornou um mistério para mim e para toda a civilização do pequeno vilarejo de Gahenna. As montanhas rochosas e a neve que cobria todo solo daquela fatídica noite escura, receberam um tom avermelhado e um odor de morte no ambiente tranquilo e sem graça. 

A minha vida sempre foi a mesma: ir ao trabalho, voltar para casa, ir à igreja aos domingos para na segunda ter mais um dia de trabalho árduo e contínuo. Sem muitas novidades nesse mundo preto e branco. Toda população de Hellblack é pacífica e um pouco robotizada. Todos com sua rotina mórbida e entediante. Não existe socialização, e qualquer tipo de som ou um mínimo ruído que seja, é estritamente proibido. Isso fez com que todo o planeta fosse pacífico, mas ao mesmo tempo um pouco maçante e deprimente. A pequena Letícia era diferente, uma criança de olhos tão profundos quanto um abismo ou até mesmo como uma noite sem lua, porém eles brilhavam intensamente como as estrelas no céu. Ela sorria e dançava alegremente pela plantação de algodão da fazenda dos Bernards, cujo foram os primeiros suspeitos. O Sr. Bernard era um homem grotesco que odiava qualquer tipo de invasor em sua fazenda, mas por incrível que pareça, não odiava a presença da criança energética e cativante. Ele não se importava em assistir a Letícia dançar entre as plantações, enquanto tufos de algodão voavam em seu redor, fazendo alguns grudarem em seus cabelos lisos e leves. No fundo ele queria ser como ela, viver uma vida despreocupada e colorida, de alguma forma aquela criança pintava o ambiente com suas próprias mãos. Ninguém entendia ou sabia como uma pequena criatura era capaz de tamanha façanha. Isso despertou inveja e olhares maldosos, além do mais, tudo o que é diferente deve ser descartado. Diante disso, as autoridades da cidade aconselharam os pais dela a educá-la, a pequena Letícia deveria ser como outras crianças, ou ela não seria considerada desse planeta. O que ela fazia era encarado como um crime à natureza desse mundo. 

Em Hellblack, onde qualquer cor é rigorosamente proibida, a pequena Letícia passava por perigo, contudo seus pais a prenderam dentro de casa, e ao sair deveria usar luvas pretas e não tocar em nada. A pequenina foi impedida de ir à escola ou até mesmo interagir com outras crianças. Passou a viver confinada a maior parte do tempo. Até que um dia se deu conta que estava se misturando e se adequando ao preto e branco do mundo. 

“A educação é a base da personalidade de um indivíduo. Onde há educação há disciplina.”

-  Jackie Sullivan (presidente da bancada da educação)

Essa foi a frase da primeira manchete do jornal de Gahenna, e na capa está estampada a foto da pequena Letícia segurando seu ursinho Tobi. Apesar de estar sorrindo na fotografia, seus olhos emitem um profundo vazio.

“Será que foi assim que perdi minha verdadeira virtude?” - Perguntei-me enquanto via aquela imagem. 

O tempo foi passando e cada dia mais, a Letícia foi se encaixando na sociedade. Ela dançava em silêncio, porém eram passos melancólicos. Se existisse música, certamente me faria chorar. 

Somos obrigados a caber nesse mundo. Mudar nossos costumes, nossas personalidades, nossos sonhos… Que cor combinaria mais nesse universo se não o preto e branco? Cores vazias que nos assombram durante séculos, um mundo no qual não existe o som de uma vida sequer. Olhar aquela criança me trazia esperança de um lugar cheio de cores vivas e harmônicas, no entanto, minha fé se esvaiu juntamente com o brilho do olhar daquela pequenina. Eu passei um bom tempo me perguntando: “Se eu fosse capaz de ver outras cores, eu seria mais feliz?” Sempre fiquei fascinado pelo que é novo. A mesmice sempre me entediou. De algum modo eu conseguia me ver naquela criança, eu era um menino que enxergava cor em tudo, mas fui inibido e reprimido por esse sistema escravizador, fui apenas mais um a cair na lavagem cerebral que a sociedade induz. Por mais que sempre achasse que era especial, em algum momento passei a não acreditar mais nisso. Atualmente me enxergo como mais número a ser descartado. Porém, meu intuito não é falar de mim, mas sim do caso.

Em contrapartida, depois da manchete e das publicações voltadas à transformação daquela criança, a vida dela passou a ser completamente midiatizada, ou seja, seu cotidiano sempre foi gravado, para que todos pudessem ver o “poder” que a educação tinha na sociedade. Mas alguns meses depois, o corpo da pequena Letícia foi encontrado coberto por um vermelho assustador, enquanto estava estirado na neve fria do bosque nefasto de Gahenna. No entanto, ninguém imaginaria que o assassino seria a própria Letícia. A faca em sua mão direita e a posição do corte indicavam suicídio. A pequena criança coloriu aquele mundo mesmo no seu fim. O caso proporcionou uma revolta sem precedentes, fazendo com que toda população guerreasse contra o sistema exploratório do nosso mundo. Transformando nosso universo preto e branco em um vermelho mortal. Foi aí que eu percebi que ver cores não é tão bom quanto eu imaginava. Os pigmentos nos quais presenciei não me fizeram felizes, como um dia eu acreditei que seria ao vê-los. E cheguei à conclusão que fomos nós que perdemos as cores, e fomos nós que damos as cores erradas para nosso mundo. 

Esse é meu último relatório, e é com pesar que me despeço antes de ver outros tipos de tinturas além de preto, branco e vermelho. 

- Allan Gutenberg (jornalista investigativo do Jornal de Gahenna).

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