CAPÍTULO 12

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[POV Rafaella Kalimann]

     O último mês foi insano. Parece cedo para afirmar isso, mas acho que encontrei e perdi o amor da minha vida na mesma semana.

     Há quem diga que amores verdadeiros e intensos se desenvolvem numa sequência lógica, - pra quem? - cronológica e com um script previsível - sempre bem piegas.

     Tudo balela.

     Hoje é meu primeiro dia de volta ao centro cirúrgico e à minha vida após ter me ausentado para cuidar de meu pai, fiquei esses 20 dias desde a cirurgia presa em sua casa e usei esse tempo para tentar colocar meus pensamentos em ordem.

Ou usou esse tempo pra pensar em Gizelly Bicalho de várias formas diferentes?

Após a cirurgia ele respondeu consideravelmente bem ao processo de recuperação, foi liberado para voltar para casa e eu precisei assumir seus cuidados.

Gizelly e eu não conversamos mais. Éramos apenas colegas de trabalho e tivemos apenas algumas cirurgias juntas.

No dia a dia trocávamos olhares intensos, afinal era inútil tentar negar a conexão física que tivemos desde a primeira vez em que nos vimos.

O mais curioso é que agora ela andava com Talles para cima e para baixo, e raramente a via sorrir, quando via, ela estava ao lado dele sorrindo para ele. Eu causei isso. Eu a afastei e machuquei quando o que deveria ter feito era ter aceitado a sua ajuda.

- Kalimann! Bom dia! - era o enfermeiro assistencial Antônio. - minha companhia de todos os dias para o hospital.

- Antônio. - sorri brevemente. Desde a cirurgia criei o hábito de ir caminhando de casa até o trabalho.

- Quer apostar que teremos uma enxurrada de traumas no P.S hoje?

- Sim, o clima está horrível e pelo que ouvi a tendência é piorar. - completei colocando as mãos nos bolsos da jaqueta.

Fazia frio e a qualquer momento começaria a chover, as trovoadas e relâmpagos deixavam isso bem claro.

Eu sempre fiquei estranhamente confortável nesses momentos que antecediam tempestades.

- Que sorriso melancólico é esse? - Antônio me olhava surpreso.

- Há certa beleza nesse momento. - sorri.

- Estranha.

- Você não é muito diferente, já que anda comigo. - brinquei.

Ainda eram 10h da manhã e o céu estava tão escuro que parecia o começo da noite.

- Corre! - Antônio gritava em meio ao som forte de chuva. Estávamos a menos de um metro da entrada do hospital.

- Mas nós já chegamos. - ri do desespero dele. Passando da porta automática percebi que os dois segundos de chuva molharam meu cabelo. Hoje teremos um plantão movimentado.

Ao me preparar para o dia de trabalho sabia que nem precisava me dar o trabalho de utilizar roupa normal por baixo do jaleco, então vesti meu avental azul e saí rumo as primeiras consultas eletivas do dia.

O barulho de chuva lá fora já era ensurdecedor, esse tipo de clima era o responsável por muitos acidentes como engavetamentos, atropelamentos e por aí vai.

Passando pelo guichê da sala de espera ouvi na TV que a notícia de que em 1 hora de chuva tivemos o volume que deveria chover em 1 semana.

- Múltiplos acidentes chegando, pessoal. Antônio, Mc Gowan e Kalimann, quero vocês aqui comigo. - uma Gizelly apressada dava as instruções enquanto distribuía os iPads para quem mencionava.

Sua postura como chefe de cirurgia era impecável e confesso que atraente.

Era inegável que sua beleza chamava atenção, seus olhos que pareciam duas jabuticabas tornavam seu olhar intenso, seu cabelo, seu corpo...

- Limpe a baba, pelo menos. - Antônio tentava conter sua gargalhada.

- Por que ando mesmo com você?

- Senhorita Kalimann, alguma dúvida? - Gizelly direcionou sua atenção para mim.

- Nenhuma. - era estranhamente animador o fato de ouvir meu nome ser pronunciado por ela.

- Ótimo. - ela analisou seu tablet. - Inclusive tem um trauma pra você chegando.

Todos se direcionaram para seus devidos setores, Bicalho é uma excelente líder e isso está fora de questão. Salas de cirurgia prontas para serem utilizadas, cirurgias eletivas adiadas e equipe dobrada no P.S.

- Antônio, vem comigo? - perguntei enquanto vestia o avental descartável do trauma.

- Estou logo atrás de você. - Antônio é enfermeiro assistencial, ele tem uma liberdade bem maior quanto ao que pode fazer com os pacientes se comparado a um enfermeiro comum. Nesses últimos dias nos aproximamos consideravelmente, ele é a dose de humor diária que eu preciso.

Me aproximei da porta automática do PS e uma lufada de vento forte me atingiu no rosto.

- Trauma chegando! - a enfermeira anunciou enquanto uma ambulância se aproximava em alta velocidade.

- Consegue terminar o nó aqui atrás? Antônio pediu parando na minha frente.

- Pronto. - e a ambulância parou bem na nossa frente.

- Paul e Philip, 10 e 14 anos, irmãos que estavam brincando na chuva e uma camionete de produtos químicos os atingiu. - os paramédicos falavam conduzindo a maca do mais velho para o leito orientado. - Paul está estável, mas Philip pulou na frente do veículo para salvar o irmão.

O mais velho, Philip tinha um deslocamento de clavícula e torção no tornozelo.

- Tem sangue no abdômen dele, precisamos drenar isso. - Gizelly surgiu no leito em que estávamos.

- Preciso dos instrumentos para uma toracotomia de emergência! - completei olhando atentamente os ferimentos do paciente e estendendo a mão para pegar os materiais que estavam sendo entregues pela equipe de enfermagem.

- Obrigada, doutora Kalimann - nossos olhares se cruzaram.

- À disposição.

Após essa emergência veio outra e outra e outra, foi um dos dias mais desgastantes aqui desde que cheguei, precisei inclusive ficar até tarde para concluir uma cirurgia de reconstrução.

A sala de descanso de chefe da ortopedia parecia uma excelente alternativa, então me dirigi até lá o mais rápido que pude.

Não podia arriscar perder a oportunidade de tirar pelo menos um cochilo até a outra ortopedista chegar, ela estava a 1h30 de distância na última vez em que falaram com ela, sua função seria me cobrir somente até eu cumprir meu tempo de descanso fora do hospital.

O quarto de descanso não é nenhum quarto de hotel 5 estrelas, mas é bem confortável. Cada chefe de departamento tem um escritório com um quarto e um banheiro, ou seja, te incentivam a literalmente morar no trabalho.

A cama é de solteiro e ao seu lado uma pequena mesinha de cabeceira ao lado de uma tomada.

Não é uma má ideia me mudar pra cá...

Retirei o jaleco e o tênis que utilizava para ficar o mais confortável possível e sem muita cerimônia deixei meu corpo pesar sobre a cama.

Gizelly é um assunto complicado que preciso resolver. Eu gosto muito dela para não dar tudo de mim pra salvar o que quer que tenhamos começado. Minhas pálpebras pesavam a ponto de fecharem sozinhas. Cedi ao cansaço.

Batidas apressadas e aparentemente incessantes me despertaram do pseudo cochilo que consegui tirar.

Justo na minha vez de descansar a doutora aprende a se teletransportar...

Chequei o celular enquanto levantava da cama e seguia em direção ao escritório. Ainda são 21h30 e nenhuma mensagem da doutora, fora que ela disse que avisaria quando chegasse.

De curiosa minha expressão passou para
moderadamente irritada.

Predestinadas - Versão GirafaWhere stories live. Discover now