A Guia

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— Eu sei o que deu errado — Jessamine apareceu na minha cozinha de repente.

Eu quase soltei o yakissoba na minha mão que eu havia acabado de pegar com o entregador.

— O que a gente conversou sobre você aparecer de repente?! — exclamei, deixando a sacola no balcão.

Quando cheguei em casa, limpei o sangue do meu nariz. Percebi, com um pouco de desagrado, que também havia sangue nos meus ouvidos. Seja lá o que isso significava, não parecia nada bom.

Contra todas as recomendações médicas que aprendi enquanto policial, eu fui dormir e acordei depois do horário do almoço com a cabeça doendo e Bolt lambendo os dedos da minha mão.

— Eu sei o que deu errado — ela repetiu com aquele olhar penetrante — Você não estava tentando o suficiente.

— Eu não estava tentando? — eu precisei rir — Jessie, eu sangrei tentando fazer isso funcionar. Como pode dizer uma coisa dessas?

— Você é capaz de controlar os laços entre o Outro Lado e esse mundo. Ainda que não possa abrir uma porta, você pode fazer todas as outras coisas e se isso não funcionou não foi culpa do ritual, foi porque você ainda não acredita o suficiente.

— Você só pode estar brincando comigo — eu me virei para as sacolas no balcão — Eu estou vivendo essa vida há mais de trinta anos e se você parasse de pensar em você mesma só por um segundo, perceberia que nem todo mundo escolheu isso e gosta de viver ajudando os mortos.

— Não é uma questão do que você gosta, Russell. Você precisa destruí-lo antes que ele-

Ele? — parei de mexer nas sacolas — Quem é ele?

— Carrie ou o que diabos for. Você sabe do que estou falando.

Nesse momento, eu percebi que tinha razão na minha desconfiança — Jessamine estava escondendo informações de mim. O motivo, eu não sabia dizer, porque ela gostava de dizer que estávamos lutando contra a mesma coisa, mas não tentava colaborar com o que sabia.

E, naquele momento, eu percebi que Jessamine sabia muito mais do que eu. Ela era discreta, astuta e talvez até um pouco perversa, porque enquanto ela fazia o papel de garota injustiçada, ela estava traçando seu próprio jogo. Um jogo que eu desconhecia.

Mas, em algum momento, ela escorregaria na sua própria mentira como todo ser humano e eu acho que deveria agradecer por isso ter acontecido antes de termos trazido-a de volta.

Com uma dor no peito, eu entendi que Jessamine não era quem eu pensava que era.

— Você tem razão — falei, soltando a sacola na mesa e erguendo o dedo — Eu não estou tentando, porque, sinceramente, eu não consigo confiar em você. Desde que você apareceu para mim, você não vem sendo sincera apesar de dizer que não ganha nada com isso... Eu não posso deixar alguém assim voltar ao mundo se eu não posso controlá-la.

Jessamine riu com escárnio.

— Você é um estúpido, Russell. Eu estou tentando te proteger! — ela gritou e as luzes da cozinha piscaram.

— Eu acho que posso fazer isso sozinho.

— Você não entende... Você não entende nem a metade...

Dei as costas para Jessamine e fui para a sala. Em algum canto, Bolt começou a latir freneticamente como se pudesse ouvir os gritos dela.

— Então me explique, porra! — falei de volta.

Eu estava de saco cheio. Não podia deixar minha vida ser ditada por mortos e pessoas que já viveram seus tempos. Eu jurei proteger os vivos quando entrei para a Academia de Polícia e ainda que os guias e seus descendentes estivessem morrendo por aí, eu não podia fazer nada.

O Guia dos MortosWhere stories live. Discover now