Cálido Hálito de Afogado

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Escuro. Não como a noite, onde, com certo esforço, ainda é possível enxergar a própria mão, mas sim algo que faz recordar o próprio breu de uma alma afundada em vergonha e tristeza. Um breu que faz qualquer um perder as esperanças de voltar a ver o sol. Então, a luz. Azulada e fria, mas luz ainda assim. Um feixe que indica vida. Entretanto, no meio de um breu tão pesado quanto um pecado, luz também desperta um dos medos mais primários do ser vivo, um alerta chamado "você não está sozinho aqui".

No caso de Feig, o alerta é mais físico, quando sua perna ruim a joga no chão. Seu lado racional tenta desesperadamente devorar qualquer resquício de iluminação, mesmo que seus instintos gritem para que deixe de ser idiota e corra, enquanto os ouvidos são acometidos por um zumbido ensurdecedor. De repente, o piso de madeira e o sangue tornam-se visíveis diante de uma fraca luz azul esverdeada, cobertos pela sombra dos fios irregulares da cabeleira da jovem, e um hálito cálido chega a sua nuca. Ela se vira contra a própria vontade, lenta como se em transe, tremendo como se coberta de gelo, e encara o próprio abismo de sua alma que, ao contrário do que ela imaginava, tem um corpo esquelético e atarracado, pequenos olhos redondos e, reluzindo na mesma cor branca, grandes asas de mariposa.

Feig esquece a mudez por um segundo e tenta chamar ajuda, mas deveria imaginar que, mesmo que alguém fosse capaz de escutar, não seria a única berrando, pois é muito pouco provável que os outros estejam em situação melhor. Mas a garota continua, se arrasta com a perna direita e os braços, tenta chegar à amurada para que a água acabe com seu terror, para que qualquer coisa, viva, morta ou nenhum e nem outro a afaste do abismo que a encara de volta e que estica sua mão ossuda em direção à perna ruim de Feig.

Subitamente, o sol aparece, e a criatura encolhe-se, tentando se proteger com suas asas. Joga-se em direção à amurada do jeito que Feig desejava fazer, mas com a velocidade de uma sombra, e some nas profundezas do rio, seu grito gutural levado pela correnteza. É então que Feig percebe ser capaz de ouvir de novo, recebida por uma cacofonia de asas e berros anômalos que fogem do sol que havia se acendido na ponta do tombadilho. A luz é forte o suficiente para chegar à costa, mesmo que as árvores retorcidas continuem tão escuras quanto carvão, e pinta todo o resto de laranja dourado. As chamas giram e crescem para longe do sol, e o anel que formam queima tudo o que toca, carbonizando em segundos a vela de traquete e inúmeras asas de mariposa. Segurando o sol na ponta da vara de madeira, o homem de cabelos arrepiados e pele queimada pousa em frente a Feig, seu poncho verde encharcado de sangue, assim como as írises de seus olhos. Ele estende a mão enluvada para ela, uma expressão confiante, e ela fica novamente de pé, logo desequilibrando-se pelo balançar do navio. O homem então entrega a muleta dela, ao que Feig sorri de canto de boca.

⎯⎯ Vá achar seus pais. ⎯⎯ O homem diz, e então a vara e o sol o seguem para outra parte do navio.

Feig enfia a mão no grande casaco cinzento e aperta para fora uma pequena imagem amarelada feminina. Com esforço e fé, vai na direção da entrada do átrio, onde um casal acaba de chegar. Um homem, branco de cabelos castanhos amarrados num rabo de cavalo usando um gibão sem mangas, e uma mulher, com uma longa e castanha trança e vestido branco que combina com o rosto cor de pavor. Enquanto Feig manca o mais rápido que pode, eles adentram o subterrâneo do navio. Num ato de desespero, a garota estica ambos os braços, vendo eles fecharem a grade que poderia mantê-la protegida dos terrores externos, e perde o equilíbrio, caindo com tudo no chão. Rola na direção da amurada, como um ato irônico do destino, onde um par de pernas esqueléticas acabava de aterrissar para fugir. Mas os olhos brancos se viram para a presa que o rio lhe deu de presente, e as asas de mariposa, antes prontas para um escape, se estendem para um abate.

𝙲á𝚕𝚒𝚍𝚘 𝙷á𝚕𝚒𝚝𝚘 𝚍𝚎 𝙰𝚏𝚘𝚐𝚊𝚍𝚘Where stories live. Discover now