capítulo 1

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No ano de 1905, as marcas da recém extinta escravidão mostravam-se não apenas na desigualdade social gerada pela falta de políticas públicas, mas permaneciam também como reflexo das mentes cauterizadas daqueles que se mantinham prisioneiros de conceitos e tradições; uma geração que a passos lentos tentava acompanhar as transformações de um mundo que se movia no contraste entre as expectativas utópicas e a realidade de uma sociedade retrógrada.

Passada a euforia da abolição, novos desafios surgem conduzindo à tão enaltecida evolução que se mostrava ainda distante do Brasil daquela época. Eram tempos difíceis, que de certa maneira afetavam todas as classes, pois traziam a necessidade de adaptação.

Essa é a história de Roan e Jasmine. Roan era um descendente de escravos, que vagava amargando as novas da tal liberdade; essa é a sua história, um homem que trocou as expectativas da liberdade pela necessidade de sobreviver, tornando-se fugitivo em uma terra hostil. Jasmine, a herdeira de um império escravocrata, vivia acomodada com os privilégios da elite, deleitando-se em futilidades, até o dia em que teve que arcar com as consequências de suas transgressões. Os destinos de Roan e Jasmine se cruzam em meio a uma tragédia, causando grandes transformações em suas vidas.

A trajetória de Roan inicia-se na fazenda Moraes Antágonas, no interior do Rio de Janeiro, um império cuja herdeira chamava-se Rafaela Moraes, uma mulher severa, detentora de costumes que caracterizaram a família Moraes em sua época. Órfã de mãe, Rafaela era filha única do barão Henrique Moraes, um homem acamado, que havia deixado a administração de seus bens nas mãos do genro e da filha; Eleutério Camões, esposo de Rafaela, um advogado boêmio e despreocupado, que se ausentava fazendo constantes viagens, era apenas um símbolo nos negócios da família, já que naquela época a figura masculina precisava se sobrepor. Embora, ainda jovem, Rafaela dedicava-se com esmero, sustentando a arrogância através da qual havia conquistado o respeito da sociedade local e o temor dos que a serviam. Roan nasceu em um casebre que ficava dentro da fazenda, sob a lei do ventre livre; mas por falta de opção, viveu as agruras da escravidão junto aos demais, até completar 18 anos em 1888. Filho de uma ama de leite cuja prioridade era a sinhazinha Rafaela Moraes, Roan (ao contrário dos outros escravos) foi poupado durante a infância, tendo boas refeições e acesso às letras, privilégios com os quais os escravos sequer ousavam sonhar. Sinhá Helena, mãe de Rafaela, era benevolente e sempre abundante em generosidade para com o pequeno Roan; mas após a sua morte, Roan (agora adolescente) viu a sorte mudar drasticamente. Foram anos de trabalho duro na fazenda dos Moraes, e mesmo com o fim da escravidão, os trabalhadores se submetiam às condições precárias e absurdas impostas por seus senhores; pois agora, trabalhavam para compensar uma dívida que nunca chegaria ao fim, trabalhavam para pagar pelo alimento que consumiam e pela cama onde dormiam. Ninguém era obrigado a permanecer na fazenda, mas não tinham para onde ir, e certamente não sobreviveriam depois de trabalhar um dia inteiro para pagar pela refeição e pelo sono do dia anterior.

Aconteceu em um dia, no fim de tarde, que, enquanto caminhava pelo pasto, Roan foi abordado por dois feitores a mando de Rafaela, exigindo que fosse imediatamente à casa grande. Sebastião e Venâncio trabalhavam na fazenda há muitos anos; desde a época dos escravos, chefiavam os capangas e supervisionavam os trabalhos; ambos não podiam contar com a simpatia de nenhum dos trabalhadores, principalmente Sebastião, pois o fato de também ser negro fazia com que fosse visto como um traidor.

- Onde está? - perguntou Rafaela, de forma objetiva, com um olhar severo, algum tempo depois, ao receber Roan na biblioteca que ficava no andar de cima da casa.

- Senhora, do que está falando? - perguntou Roan, demonstrando não entender o que se tratava.

- Não se atreva a zombar de mim! Entregue o que pegou, diga que não teve a intenção de roubá-lo, implore por misericórdia, e deixarei que vá embora sem punição.

Amor, preconceito e outras tradições (degustação).Onde histórias criam vida. Descubra agora