Capítulo 1 - Se você cair

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Parte I - Achado

Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces

Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.

No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida

E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.

- Vinicius de Morais, "Ausência"


Cair era uma das piores sensações que alguém poderia experimentar.

Mais do que a gravidade ou a incerteza de quantos dos seus ossos iriam se quebrar no fim, o que mais o arrasou foi a impotência: ver-se estirado pelo ar sem poder fazer nada a não ser encarar seus braços e pernas flutuando, sacolejando de um jeito estupido. Suas asas batiam freneticamente, mas àquela altura, eram nada mais do que apêndices coloridos e inúteis, que ele temia serem arrancados de si a cada segundo.

Ele estava acostumado a ter o controle sobre coisas. Ele era o mais inteligente, o mais carismático e frequentemente o mais rico. Ele sempre via o vento soprar na direção que ele pediu.

Mas o vento soprava de todos os lados agora e ele concluiu que, gênios ou idiotas, todos caem com a mesma força.

Ele gostaria de não ter descoberto isso daquela maneira, mas era tarde demais. Seu estômago parecia ter entrado o mais fundo possível para dentro das suas entranhas e congelado por onde passou. Se sobrevivesse à queda, tinha certeza que vomitaria tudo que pudesse.

Uma visão muito digna do prodígio de Maäl-len.

Poderia ter escrito um livro no tempo que pareceu levar até o chão. Teve prazo para muitos arrependimentos. Pensou na cadeia de eventos que o levaram até ali, desde o momento em que começou a ver tudo o que vinha construindo há anos desmoronar diante dos seus olhos até poucos segundos atrás, quando teve ele mesmo que se jogar nos ares em um planeta desconhecido, confiando sua vida mais ao chão centenas de léguas abaixo do que àqueles que considerava seus amigos. Há algum tempo percebera que alguém o estava traindo, mas jamais imaginaria que fossem eles.

Jamais imaginaria que fosse ela.

O chão o fez sentir saudades da queda.

Nada nunca havia doído tanto na sua vida, e sua espécie vivia por muito, muito tempo, tinham oportunidades quase infinitas para sentir dor. Ele não era tão velho, mas também não era mais uma criança. Nem se juntasse todos os tombos que levara até aprender a controlar as asas e os elevasse ao quadrado, se aproximaria do que sentiu. O solo duro o engoliu como se fosse água. Pedra, terra e galhos voaram para todos os lados e suas asas se quebraram como se fossem feitas de cerâmica.

Puxou o ar num ofego estrangulado e úmido. O ar daquele lugar foi um soco no estômago. Suas costelas rangeram de uma maneira estilhaçada e soube que haviam partes delas onde não deviam.

Delirou por alguns instantes que não soube calcular. A dor e o ar venenoso competiam pelo seu corpo. Lembrou-se de quando não media mais do que quatro pés e seu progenitor o levou até um dos bao-baäs, para que finalmente testasse o que havia aprendido com suas asas. Recordava-se de ter fitado tenebrosamente o chão muito abaixo da planta e perguntado ao pai o que aconteceria se falhasse. "Se você cair, é por que merece" ele lhe respondeu.

Talvez ele estivesse certo.

Retesou-se inteiro e jogou o tronco para o lado no tempo exato de despejar metade do estômago dentro da cratera onde caíra. Ele sabia que ia vomitar.

Lamentações das EstrelasWhere stories live. Discover now