Capítulo 23 - Morado

21 3 0
                                    

Para uma pessoa tão inteligente quanto Maria Cecília, aquela atitude parecia realmente estúpida. Já vi pessoas sendo deixadas para trás por muito menos, jamais a culparia por ir embora sem mim.

Mas ali, dentro do carro em alta velocidade pelas ruas de são Paulo, eu era importante, era alguém que valia a pena para uma mulher rica de família.

- Você se machucou? – ela berrou fazendo a viz aguda reverberar no espaço pequeno.

- Não, vai mais devagar, ninguém está nos seguindo.

Ela olhou pelo retrovisor e foi pisando no freio até estar na velocidade aceitável, respirei aliviado e olhei no banco de trás.

- Você está bem?

- Estou, pode me levar para casa?

- Ainda não – Ceci respondeu por mim – precisamos de você, Brenda.

- Vamos cuidar de você por um tempo, pode ligar para a sua mãe de manhã – me virei para Cecília, seu rosto impassível prestava atenção na estrada – para onde está indo?

- Minha família tem uma casa, é longe do centro. Vamos ficar lá até Brenda se sentir melhor para ir a delegacia.

Não era hora para discutir com Ceci, ela estava agitada, nervosa e tinha acabado de salvar a minha vida. Mas eu estava convencido de que ir a polícia não ia ajudar em nada. Ela entrou em um bairro residência silencioso, virou várias ruas antes de parar em frente a um pequeno sobrado.

- Que casa é essa?

- Meu pai cresceu aqui, nunca vendeu, é tipo uma relíquia de família.

- Você tem a chave?

- Esperava que você resolvesse isso.

- Sou traficante, Cecília. Não um ladrão de casas.

Ela ignorou, abriu a porta e saiu do carro, tirou um molho de chaves do bolso e abriu o portão, fiquei aliviado, se estava fazendo piada então estava bem.

A casa não tinha luxo, apenas moveis velhos, acendi um abajur na sala e me virei para Brenda.

- Mantenha as luzes baixas e ó faça barulho se necessário.

Ela entendeu, Cecília conseguiu roupas para ela e a instruiu a tomar um banho, eu teria impedido se achasse que um exame seria feito na menina no momento da denúncia. Pelo menos assim ela ficaria mais confortável.

- Sei que não acredita nos meus métodos, Alan. Mas é a única forma de conseguir justiça.

- O que você chama de justiça eu chamo de elitismo.

Ceci passou as mãos pelos meus ombros e me envolveu em um abraço apertado, a segurei, dando a ela a chance de desmoronar.

- Eu posso ter matado aqueles homens.

- Foi para se defender, ninguém vai culpá-la por isso.

Ela soluçou em meu abraço, eu a entendia, apesar de não ter me sentido mal em atirar naqueles seguranças, não a culpava por ser tão sensível, afinal, se não fosse isso, ela não teria voltado para me ajudar.

- E tive tanto medo de perder você.

- Você ia conseguir outro namorado falso – ri fraco, a embalando comigo.

- Eu sei, podia até conseguir um namorado de verdade. Mas não seria tão divertido.

Ela sorriu de leve, apenas os cantos da boca curvados em arco, senti meu peito se expandir. Eu gostava dela e era recíproco, não precisávamos falar sobre isso, nós dois já tínhamos entendido muito bem.

Ceci levantou o rosto para mim e a beijei, suave, era um agradecimento e ao mesmo tempo, um cuidado.

- Você vai ficar bem – sussurrei como um segredo.

- Precisamos encontrar uma delegacia para levar a Brenda. Não pode ser a que eu trabalho, não com Renald lá.

- Mas precisamos montar uma estratégia, se apenas nós soubermos, eles podem abafar o caso.

- O que sugere?

- Vamos pôr na rede. Gravamos o depoimento da Brenda aqui e subimos no Facebook. Causamos uma histeria. Assim, quando você a levar para a delegacia, eles não vão ter como ignorar.

- Não quero colocar ela nessa situação.

- Não acho que tenhamos escolha agora, Ceci.

Ela respirou fundo, ainda estávamos abraçados quando Brenda apareceu a porta, queixo erguido e olhos confiantes.

- Eu faço. Quero que todos saibam pelo que eu passei.

Peguei meu celular no bolso e o posicionei, Ceci esperou pelo dela, mas não consegui pegá-lo.

- Sinto muito. Foi rápido demais.

- Tudo bem, é melhor assim, eles podiam nos rastrear.

Brenda se sentou na sala, estava vestindo uma camisola comprida e de mangas longas com um ursinho bordado no peito, provavelmente era de Cecí quando tinha aquela idade, não combinava com a atitude desleixada da menina, o que tornava a cena mais incômoda.

Ela começou falando sobre como foi tirada do morro, como a enganaram e atiraram na Thuany, colocaram ela e a outra menina na van, essa não sobreviveu a primeira noite.

Depois sobre como a compraram, agrediram, abusaram.

Enquanto ela falava, o ódio crescia em meu peito, absurdamente sufocante. Eu senti a pele muito do que ela contou.

Naquele momento eu desejei que a polícia não fizesse nada realmente, para que eu pudesse matar todas aquelas pessoas com minhas próprias mãos.

- Você viu os rostos deles? – Cecilia a estava interrogando.

- Sim, não se preocuparam em esconder.

- Consegue identificá-los?

- Com certeza.

- Você está a salvo agora, eu prometo.

Parei a gravação, um vídeo de vinte e três minutos que levaria muito tempo para ser upado. Ainda assim o fiz, em meu próprio perfil, pedindo que compartilhassem. Quando finalmente estava disponível, entreguei o aparelho á Brenda.

- Liga pra sua mãe.

- Obrigada.

Ela começou a discar, mãos trêmulas e nervosas. Precisei sair para tomar um pouco de ar, mas não fiquei sozinho por muito tempo, Ceci apareceu atrás de mim, se sentou na mureta que cercava a varanda, seus olhos examinaram meu rosto.

- Parece no limite.

- Eu estou, aconteceu muita coisa hoje.

- Eu estou orgulhosa de você. Fez o certo.

- Você foi tão corajosa, Ceci. Não importa quanto tempo eu passe com você, sempre está me surpreendendo.

- Acho que fiz mais por causa das meninas que por mim mesma.

- Eu tenho que ir para casa, não posso ir a delegacia por motivos óbvios.

- Sei disso, tudo bem. Vai dar tudo certo.

- Sabe o que faremos a seguir?

- Espero que não precisemos fazer mais nada. Brenda vai dar o depoimento, a polícia entra e acaba com o esquema, salva as que estão lá e impede que outras sejam sequestradas.

- Acho engraçado a forma como você fala, sempre sobre livrar as vítimas e nunca sobre punir os agressores. Nem você acredita no sistema.

- Minha responsabilidade é com as famílias, os criminosos é um assunto fora da minha alçada.

Ela vacilou em cada palavra, sem convicção nenhuma no que dizia.

Eu podia ter acreditado que aquele era o fim de tudo e as coisas ficariam bem, mas eu estaria mentindo, voltar para casa me provou isso.

Meninas do MorroWhere stories live. Discover now