Laura

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Estendia-se no horizonte uma planície de vegetação rala, variando entre tons verdes e o ocre das folhas mortas. Por baixo, a areia amarela evidenciava as dunas mais distantes, porém visível aos olhos. Pássaros voavam, alheios à humanidade, esbanjando a sua liberdade e pareciam zombar dos seres humanos e quase-humanos. Pela tarde, nas vésperas do pôr do sol, o vento fazia-se ouvir e enfeitava o cenário. Os tons róseos e laranjas logo tomavam o céu.

Laura sempre pegava sua cadeirinha, legava até a parte mais alta, sentava-se e admirava o espetáculo daquelas tardes. Quando de pé, era possível ver a água do mar que cintilavam lá longe nas mesmas cores do céu. Num mundo que falecera, aquele cenário era uma pequena parcela de vida. Então via a vida todas as tardes e aquela vista fora sua terapia. Arriscou pintar, mas não era muito boa, ela pensava, no entanto, continuava a arriscar alguns dias.

Era só. Apesar de simpática, tinha certa dificuldade de socialização. Viu morrer as últimas pessoas que amava. Nunca pensou que veria os órgãos internos de seus pais tão expostos pelas mãos dos selvagens, mas viu. Correu, passou um tempo escondida até ser resgatada por alguns transeuntes do local onde viveu seus últimos dias.

Aquelas tardes, aqueles tons, foram a única visão forte o suficiente para tirar de sua memória a visão de seus pais mortos. Então viciou-se naquele céu. Até que aquele vento apaziguou suas memórias de pânico.

E foi numa dessas tardes, de vento e céu laranja, que escutou o ranger dos portões enferrujados se abrirem. Entram dois homens e um deles, Téo, logo vê aquela menina solitária mais distante e sozinha. Laura vê de longe aqueles olhos castanhos claros reluzirem o sol, e a partir de então preferiu ver o sol através de seus olhos.

Ela não tomaria qualquer atitude, mas nos dias seguintes as suas saídas nas fatídicas tarde ganharam um novo propósito: queria descobrir mais sobre ele e vê-lo. E seu propósito era sempre atendido. Téo gostava de passear aleatoriamente pelas tardes, sentar-se num banquinho. De longe ela o assistia, Téo que tentava sempre consertar alguma coisa. O sol fora deixado de lado e Laura sentiu suas entranhas de menina torna-se entranhas de mulher. Sentia novas vibrações pelo seu corpo, vibrações desconhecidas. Novos anseios do corpo solicitando serem atendidos, mas jamais movera um músculo para atender seus desejos. Era tímida demais, e a cidade lhe favorecia criar uma atmosfera de princesa esperando ser conquistada. Ironicamente, pois já ardia em desejo por Téo.

Eles se encontraram nas mesmas tardes, Laura tentou inventar uma desculpa, quebrar um rádio e pedir ajuda, mas era tão inexperiente que não sabia como prosseguir. Até que, saindo com seu banquinho, cruzou milagrosamente com ele e, milagrosamente, ela teve coragem. Boa tarde. Boa tarde. Ele se ofereceu para levar o banco e ela aceitou. No caminho ela pensara na coincidência mágica, ele se alegrava porque enfim adivinhou o horário certo em que ela saía da casa, depois de errar alguns dias.

Naquele dia ela pode ver mais de perto o sol refletido pelos olhos de Téo. Aqueles grandes cílios e os lábios que muito lhe chamara à atenção. Ele enfim descobrira o porquê de ela sempre ir ali, ficou maravilhado com a vista e a brisa do vento calmo. Agora ele teria uma desculpa, queria consertar os eletrônicos ali, em sua companhia. Ela aceitou. Tentou não ser assíduo, para não soar invasivo, mas numa tarde eles não resistiram mais e as línguas de ambos invadiram um a boca do outro.

O sol logo perdeu sua importância, Téo era o novo sol de Laura. E numa tarde qualquer, afastaram-se ao máximo pelo monte e Laura experimentou pela primeira vez a quentura de seu novo Sol.

***

Você tem que evitar ser visto com ela, ela é o ponto fraco, dizia Joaquim a Téo. E o que podemos fazer? Perguntava. Foi então que decidiram eliminar um por um. Funcionou nas primeiras três tentativas, mas depois eles mudaram os planos e Tom reuniu todos na mesma casa.

Téo enfrentou a si mesmo. Apesar de achar ruim, concordava com Joaquim, Laura era realmente fraca. Não saberia nem mesmo se poderia confiar nela e justificar a ausência. Dolorosamente fez o que achou certo, terminou o mágico romance, o que deixou Laura devastada.

A agitação seguia dentro daquela pequena cidade. Efervescidos, queriam celebrar a sobrevivência da cidade. Era algo inédito. Mereciam, eles pensavam. Seria algo civilizatório, relembrar os velhos tempos. Os discípulos estavam passo a passo conseguindo realizar seu plano de extermínio.

Joaquim, em contrapartida, tentava aludir aos riscos do barulho que poderiam atrair os monstros lá fora. Acontece que aquela pequena cidade corrompia a todos. Eles não sabiam lutar, sobreviver. Não lembravam do horror além dos muros. O falido conselho de pessoas inexperientes e inocentes demais. Os discípulos conseguiriam realizar seu plano, pensou Joaquim.

Joaquim cogitou a opção de fugir, mas como conhecia quase todos os discípulos, percebeu que Criston ficou encarregado de lhe seguir. Se fugisse, não teria como enfrentar dez deles. Só restou-lhe permanecer e tentar negociar sua sobrevivência.

Desde a chegada de Tom e companhia, Joaquim passou a preparar sua própria comida, pois o método dos discípulos era sempre por envenenamento. Era mais fácil, sem armas, sem luta e os próprios mortos terminavam o trabalho.

Esgotadas as alternativas, Joaquim negociou. Tom lhe dissera que de alguma forma Diana o protegeria sempre. Ele era a única pessoa capaz de soltar José Pedro, o irmão mais novo de Tom e o grande amor de Penélope. Onde ele está? Perguntou Joaquim. Não sei, você vai descobrir.

***

Tom conhecia bem Joaquim e temia qualquer investida, embora Joaquim já estivesse rendido.

Era uma madrugada qualquer, Joaquim acordara com o barulho de gritos e correria dos habitantes. Retirando a cortina da janela, viu o completo caos já envolto em fumaça, mortos e destruição. Sentiu-se confuso. Por que eles mudaram o plano?

Ao sair da casa com Téo, Tom e alguns discípulos já lhe esperara com armas. Vedaram-lhes, amordaçaram e amarraram-lhes as mãos. Guiaram-lhes entre os mortos, eles sentiam medo. Enfim lhe puseram de joelhos, amarraram os pés de Téo.

Ao tirar as vendas, Téo se viu em cima do mesmo monte onde dera o primeiro beijo em Laura. O mesmo monte onde desfolhou o amor. As lembranças logo sumiram, ao avistar Laura que também estava nas mesmas condições. Lá atrás a pequena cidade falia. Era possível escutar os gritos.

O acordo tinha sido feito, mas para provar a lealdade de Joaquim, Tom solicitou que ele decapitasse um dos dois ao seu lado, Téo ou Laura. O que sobrasse, iria embora com ele e soltaria José Pedro.

A mordaça já estava toda envolta em saliva. O suor ia encharcando tudo. Aos poucos Joaquim quebrava todo o personagem que construiu ao longo dos dois calmos anos dentro daquela cidade. Não havia discussão. Não havia como lutar contra mais de dez. Soltaram-lhe. Minutos depois Joaquim caminhou até tom com a cabeça nas mãos.

***

Criston assistia de longe, por entre as árvores, o encontro escondido. Apesar de tudo, os dois jovens não pareciam contentes. Criston acabara de descobrir mais um vínculo que poderia ser usado ao favor deles contra Joaquim; Laura. Dessa vez não estavam ao vento daquele alto monte, mas por entre as casas. Criston não viu por acaso, ele estava seguindo Téo e a descoberta de uma pessoa vulnerável era o que eles precisavam para ameaçar Joaquim.

Criston observou alguns minutos, a vista alcançava perfeitamente o enlaço dos dois jovens, o beijo, a respiração ofegante, mas tinham os rostos tristes e trocavam palavras que não chegavam até Criston, que saiu logo após coletar informações suficientes de que eram um casal.

E se Téo soubesse que aquele era última vez que beijaria Laura? Teria feito diferente?

A paixão intensa entre os dois fez com que cada beijo fosse o último, cada palavra, eterna, e cada abraço, potente. À noite as lágrimas banhariam o chão e o rosto de Téo, porque as últimas palavras que ele ouviu de Laura naquele dia foram que ela estava grávida. Quando chegou a noite, ali mesmo, com o rosto encostado no chão, assistia o terror da morte de Laura e o ventre que traria seu futuro filho. 

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⏰ Last updated: May 01 ⏰

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