1 Plano (quase) Perfeito

TERCEIRA PESSOA

Ramiro se lembrava de ter ido dormir sem Kelvin ao lado, mas sem saber ao certo como, acordava com os cabelos lisos fazendo cosquinha em seu nariz. Sentia os braços do rapaz preguiçosamente enrolados em sua cintura e quando abriu os olhos com dificuldade, encontrou o loiro dormindo profundamente sobre seu peito. Os lábios levemente abertos, projetados para frente em um beicinho.

Na intenção de fazer com que seu amigo não sentisse a vergonha que ele próprio sentiu na manhã anterior quando despertou colado ao outro, Ramiro pensou em se levantar primeiro; afastar-se delicadamente do corpo quente que dormia tranquilo em cima do seu ou, no mínimo, voltar Kelvin para a outra metade da cama que parecia intocada.

No final das contas, não fez nenhuma coisa nem outra.

Continuou deitado sentindo a respiração lenta bater em sua pele e deixou que os fios lisos continuassem a coçar a ponta de seu nariz. Voltou a fechar os olhos e, sem pressa, seguindo o ritmo da respiração profunda do outro, acariciou a pele das costas alvas com as pontas dos dedos. Sentia-se completamente encantado com a maciez e, algum tempo depois, com a texturização que surgia sobre suas digitais no explorar suave que seus dedos faziam subindo e descendo a derme alheia.

- Acordei com uma estrofe e uma batida na cabeça. - Kelvin murmurou ainda de olhos fechados, dessa vez sem se retrair por estar confortavelmente deitado sobre Ramiro.

Em outro momento talvez tivesse se afastado rápido por achar que era o único acordado e, consequentemente, o único confortável com a falta de espaço entre eles, mas aquele não era o caso. Estava há minutos acordado sentindo Ramiro trilhar carinhosamente a linha da sua coluna em um caminho arrastado, e isso por si só já eliminava os dois pensamentos anteriores.

Nem ele nem Ramiro estavam desconfortáveis.

- Faz tempo que não escreve nada - ouviu a voz rouca, meio surpresa, invadir seus ouvidos no segundo que as pontas dos dedos deixaram de tocá-lo. Soltou um muxoxo e se jogou para a lateral renegada da cama.

Talvez devesse ter continuado fingindo dormir, pensou, sentindo o lençol gelado em contato com seu corpo.

Ramiro riu da reclamação baixa seguida do loiro se espreguiçando com um gato gordo.

- Bom dia. - encontrou uma posição confortável para si, deitando de frente para o maior.

- Bom dia. - copiou Kelvin - Sua música...

- Não é uma música. - riu soprado.

- Deveria ser.

- O músico aqui é você, Rams, Rams. - devolveu com um sorriso brincalhão.

- Nem vem, 'ocê é muito bom, sabe disso, não sabe?

Kelvin negou em uma careta, sentindo as bochechas começarem a esquentar.

- Não é assim também, ou.

- É sim. Eu gostava muito de te ouvir. De ouvir o que 'cê compunha... - a voz era baixa, quase como se Ramiro relembrasse algo proibido. - E os vídeos que fazia também. Não sei porque parou...

Kelvin se revirou na cama, parando de barriga para cima e olhos distantes.

Sim, houve um tempo em que o rapaz escrevia coisas, muitas, mas isso fazia muito tempo atrás. Quando mais novo Kelvin estava sempre anotando frases, montando trechos e arriscando harmonias no teclado. Preferia ele ao violão. Mas isso tinha ficado para trás e ele nem mais se lembrava como era compor. Escrever parecia ainda mais distantes do que os vídeos que Ramiro recordava com saudade. Seu singelo canal no Youtube era mais recente, mas também estava parado há tantos meses que se fosse um objeto já estaria coberto de poeira.