Helga

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Os primeiros raios de sol iluminavam o colchão no meio da sala de TV. Dante rolou para o lado, escondendo o rosto da luminosidade na sombra que o sofá projetava. Deveria ter dormido no quarto na noite anterior; não queria acordar tão cedo.

O gosto amargo de ressaca exalava de sua boca, mas era a ressaca moral que o atormentava mais. Insistiu por mais alguns minutos antes de desistir. Levantou-se, procurou algo para comer e foi para o ateliê que improvisava em um dos quartos da casa.

Era um cômodo simples: uma mesa com cadeira, um cavalete e um armário onde guardava seus materiais. Em uma das paredes, um mural de cortiça com algumas fotos, um convite para um jantar, alguns desenhos de referência e um calendário impresso numa folha A4. No canto, uma almofada onde a Estrela, às vezes, dormia.

Sentou-se de frente para o cavalete, onde uma tela branca como leite parecia suplicar por um pouco de tinta, e permaneceu ali por alguns minutos. Como um filme antigo, sua imaginação projetava, em preto e branco, flashes de cenas vividas nos últimos meses: desde o dia em que viu Helga pela primeira vez até a conversa inicial, que terminaria tragicamente nos eventos da noite anterior.

Despretensiosamente, pegou um tubo de tinta bege. Nem se deu ao trabalho de pegar um pincel; apertou o tubo contra a tela e começou a espalhar a tinta com o dedo indicador. Logo, eram dois dedos; depois, a mão toda. No início, as formas eram redondas e simétricas.

Dante sentia-se hipnotizado, quase como se estivesse psicografando aquela pintura; o transe era crescente. Sem tirar os olhos da tela, tateou a gaveta onde guardava os tubos de tinta com sua mão ainda limpa. Pegou cinco ou seis, puxou para seu campo de visão e deixou que todos caíssem, exceto o vermelho. Teria preferido um tom mais claro, mas não havia tempo para caprichos. Abriu o tubo de forma desajeitada, deixando a tampa cair; encostou a ponta do tubo, deixando um ponto de tinta: eram os centros dos círculos.

Deu dois passos para trás, olhou para a tela, visualizou o resto da obra como numa bola de cristal. Já sabia o que fazer. Estava assustado; nunca havia pintado assim. Sempre fora um artista lento e metódico. Gostava de pesquisar, elaborar, esboçar; compartilhava trabalhos inacabados a fim de obter feedbacks. Era muito sensível à opinião alheia e ao próprio julgamento, implacável e perfeccionista. Não saberia dizer quantos projetos abandonou nessas fases prévias.

Antes que o pensamento o paralisasse, concentrou-se novamente na tela. Partindo dos círculos, desceu com as mãos em um movimento curvo: primeiro aproximando uma da outra, depois as distanciando para, em seguida, aproximá-las lentamente uma última vez. Fez e refez esse caminho várias vezes; sua respiração acelerava por entre seus lábios semiabertos. Quando o caminho já estava memorizado, continuou a trilhá-lo, agora com os olhos fechados. A tela emitia calor; por um momento, jurou ter sentido uma fina camada de pelos enquanto suas mãos deslizavam.

Voltou-se para a parte superior; com as mãos espalmadas, esfregou a tinta para os lados e para cima até não haver mais tela. Retornou pelo mesmo caminho e, com as mãos juntas, subiu pelo meio da tela até a extremidade. Era capaz de sentir um perfume adocicado em suas narinas. Com o esboço feito, procurou por diferentes tons de tinta para acrescentar detalhes, sombras, luzes, texturas.

Ajoelhou-se para acrescentar os detalhes da parte inferior. O nervosismo era incontrolável. Conforme cada dobra de pele tomava forma, o cheiro de fluidos corporais parecia tornar-se mais real. Sem que notasse, lágrimas brotavam de seus olhos; percebia que estava fora de si, mas nada podia fazer. Quando terminou, mal conseguia controlar os soluços.

Virou-se para a estante, abriu a segunda gaveta violentamente; a terceira, ainda mais; a quarta caiu no chão com o puxão. Sabia que estava ali em algum lugar. Empurrou papéis, abriu caixas, moveu móveis e gritou barbaridades, até que finalmente o encontrou.

Com o polegar, empurrou a lâmina para fora. Aproximou-se da tela, encostou o rosto no pescoço da pintura, sujando-se de tinta fresca. Com o estilete, fez um pequeno talho na parte inferior.

— Perdoe-me! — sussurrou.

Com a outra mão, abaixou a bermuda e enfiou seu pau duro no rasgo recém-aberto. Sentiu-se envergonhado; deixou a lâmina cair de sua mão, abraçou a pintura e a penetrou, aos prantos.

— Perdoe-me — gritava, cravando as unhas na jugular recém-pintada.

Quando terminou, estava sujo de tinta, sentindo-se culpado, e, na tela, restava apenas um borrão. Deu por si desnorteado, girando lentamente numa sala bagunçada; alternava choro e gargalhadas, murmurava palavras ininteligíveis. Deitou-se ali mesmo, no chão, fechou os olhos com força e implorou por um sono.

Desistiu.

Ao abrir os olhos, viu um vulto cor de laranja recuperar o foco. Era o estilete.

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