4. Em terras cariocas

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Miguel não foi ao hospital coisa nenhuma. Se o delegado não podia fazer nada. Era problema dele. Miguel podia fazer alguma coisa e faria. Dora nunca teria lhe dito nada sobre seu ex-namorado. Ela sempre era muito discreta. Porém a indiscrição de Miguel lhe valera o nome do ex-namorado de Dora, Antônio Rogério Dias Aguiar. Ele ainda lembrava do envelope da carta que violara. Descobriu sem dificuldades que ele era um advogado famoso do Rio de Janeiro. Agora não seria difícil para Miguel ir atrás dele.

 Miguel sobrevoou a baía de Guanabara com um sorriso nos lábios. Os paulistas que o desculpassem, mas sua terra era linda demais. Chegando em Santos Dumont, apesar das saudades da família, tinha um destino certo: o escritório do ex-namorado de Dora. Por sorte, o escritório era no centro, bem perto do aeroporto, talvez sobrasse algum tempo para fazer uma visita surpresa para sua mãe.

 Na recepção uma senhora idosa, mexia no computador, claramente sem nenhuma habilidade. Seu ar bondoso e seu corpo roliço combinavam muito mais com uma cozinha aconchegante do que com um frio escritório. Miguel sem dificuldade conseguia imaginá-la com um vestido xadrez cor-de-rosa e as bochechas generosas rosadas tirando um bolo quente do forno.

 A senhora olhou para Miguel e abriu um sorriso cativante e em seguida perguntou cordialmente com aquele sotaque carioca mais antigo, suave e ritmado:

 -Bom dia, senhor. Como posso ajudá-lo?

 Miguel sorriu. Ele ficou satisfeito por estar de volta a sua terra, e, não economizando no carioquez, respondeu:

 -Bom dia, minha senhora. Espero que esteja bem. Eu procuro Antônio Rogério Dias Aguiar.

 -O senhor tinha uma reunião com ele?

 -Não.

 -Bem, sinto informá-lo que o doutor Antônio não está, vamos dizer assim, disponível, sabe?

 -Sabe quando poderei encontrá-lo?

 -Não poderá. Eu sinto muito - disse a senhora roliça com um proposital ar de suspense, encarando Miguel para ser mais uma vez questionada.

 -Bem, sendo assim eu quero marcar uma hora.

 -Infelizmente, temo que isso também será impossível -novamente a velha senhora lhe olhou longamente, insistindo para que Miguel lhe perguntasse.

 -Mas por quê?

 -Bem, sinto em informá-lo que o doutor Antônio faleceu.

 -Como?

 -Sinto muito, senhor - disse a gentil senhora carregada de pesar.

 -A senhora poderia me dizer o que aconteceu?

 -Vocês eram próximos? -quis saber a senhora.

 Percebia-se pela expressão daquela simpática senhora que ela estava louca para poder falar sobre o ocorrido, só precisava mesmo de um empurrãozinho, o qual Miguel deu com prazer ao responder sem muita convicção:

 -Como irmãos.

 Miguel não era um bom ator, mas estava se esforçando. Ainda assim era claro a qualquer um que entendesse um pouco sobre o comportamento humano que ele mentia descaradamente. A recepcionista, contudo, realmente parecia não se importar com a má atuação de Miguel, afinal tudo o que ela queria era poder fofocar tudo que sabia.

 -Bem, se você é muito amigo do doutor Antônio, eu posso dizer, aliás eu acho até que devo, não é mesmo? Sim, como boa samaritana eu tenho que lhe contar o ocorrido. É tudo muito estranho, sinto lhe dizer. Sabe, encontraram seu corpo no apartamento. Estranharam aqui no escritório que ele faltou a uma reunião importantíssima e não atendia o celular, tampouco respondia os e-mails ou as mensagens de texto que lhe enviaram. Eu mesma lhe enviei umas cinco e nada, nenhuma resposta. E o doutor Antônio não é disso. Bem, você o conhece, o nome dele é trabalho. Até acho que ele trabalha demais, sabe.  Eu digo isso aos meus netos. Trabalhar é bom, mas descansar é melhor ainda. Mas a geração de vocês, o senhor me perdoe, trabalha demais. Tem tanta coisa boa na vida, vocês nem imaginam. Vocês não podem imaginar como é bom viver e na minha época, então!? Eram os anos dourados, o senhor deve imaginar que maravilha foi. - A velha senhora olhou para Miguel para julgar seu interesse pelo assunto e constatou que não existia - Bem, me desculpe, isso não vem ao caso. Bom, o que aconteceu foi que depois de muitas tentativas, o doutor Eduardo, que também é sócio aqui do escritório, você o conhece? -Miguel balançou a cabeça negativamente- Achei que não conhecesse, pois bem, ele resolveu ir até o apartamento do doutor Antônio. Fez bem, sabe, afinal podia ter acontecido alguma coisa. O doutor Eduardo tem mesmo muito expediente não é como uns e outros, se é que o senhor me entende. Bem, então, o doutor Eduardo foi até o apartamento do doutor Antônio e arrombou a porta. É, ele é forte também e alto. Para ele foi moleza. Uma força esse homem, é de se admirar. Hoje em dia poucos homens são assim viris, sabe? Não entendo o que aconteceu com o mundo. Na minha época era diferente. Os homens eram homens com o “h” maiúsculo. Meu pai, o senhor tinha que ter conhecido, era  homem de verdade. Feliz foi minha mãe, que Deus a tenha. Bom, mas o que importa é que o doutor Eduardo encontrou o doutor Antônio morto. Segundo disseram, já fazia pelo menos um dia.

 Miguel ficou impressionado com a tagarelice da senhora, afinal ele estava acostumado com Dora que sempre economizava nas palavras. E, percebendo que ela falaria tudo que sabia e mais um pouco, Miguel resolveu investir naquela conversa. Era só dar corda que a senhora entregaria tudo.

 -Que tristeza! Obrigado mesmo por me contar. Nós éramos próximos mesmo, sabe? Amigos de infância. Mas, me conte, do que ele morreu? Coração?

 -Não sabemos, mas tudo indica...Cá entre nós, hein? Que ele não morreu de morte natural, se é que o senhor me entende.

 -Ele foi assassinado?

 A senhora arregalou tanto os olhos que pareciam que iriam lhe saltar da face:

 -Ai, Senhor do céu! Que boca! Aqui nós não falamos essa palavra. Cuidado!

 -Desculpe-me! Mas é que se ele não morreu de morte natural, ele foi, bem a senhora me entende, não é?

 -Claro! Mas sejamos discretos! - disse a senhora em tom autoritário.

 Miguel achou graça, afinal era ela quem tagarelava sem parar, mas preferiu não retrucar:

 -Claro, claro, a senhora tem toda razão. E eu que queria fazer uma surpresa para meu amigo aparecendo por aqui. É muito chocante. Eu não sei o que dizer.

 Ficamos todos muito chocados. O doutor Antônio era muito jovem e muito atlético. Quem poderia imaginar que ele morreria tão cedo?

 - Mas me conte, alguma pista de quem possa ter feito essa barbaridade?

 -Nenhuma, mas não deve demorar muito. O doutor Antônio era muito influente. Muitos contatos, sabe? Imagine que era amigo íntimo do prefeito e também do governador! Advogado criminal respeitadíssimo. O senhor deve imaginar.

 -Ah, sim, eu conheço o Antônio, excelente advogado.

 -Pois é, a delegacia vai a fundo, o senhor pode escrever aí.

 -É uma tristeza tudo isso. Acho que perdi a viagem. O enterro certamente já foi. Queria ter prestado meus pêsames à família.

 Percebendo a estranheza no rosto da senhora, Miguel percebeu que aquela senhora devia estar se perguntando como um amigo que dizia ser íntimo simplesmente desconhecia a morte do seu suposto amigo, por isso emendou:

 -Nós éramos, como disse à senhora, amigos de infância, daí fui morar em São Paulo para fazer a faculdade e perdemos o contato, mas ele era um grande amigo. O que estou falando? A senhora deve compreender isso muito bem.

 -Ah, eu entendo. Eu já perdi uma amiga muito próxima também. Foi um choque. Foi um terrível acidente. Ela não sabia nadar e um belo dia resolveu ir mais fundo do que deveria, morreu na praia de Ipanema, nesse mar de Deus, uma tristeza.

 -Eu sinto muito. Sei como a senhora se sente.

 -Mas não fique triste, sua viagem não foi perdida. Hoje vai ter missa de sétimo dia. É daqui a pouco, por isso que o escritório está vazio. Foram todos para lá, mas alguém precisa ficar, não é? Se o senhor correr, ainda dá tempo.

 -Será ótimo dar meus pêsames à família. Onde é?

 -Na paróquia Nossa Senhora da Paz, em Ipanema.

 -Vou correr para lá. Obrigado! -agarrou as mãos da senhora e beijou, na hora a senhora avermelhou-se feito um tomate e respondeu timidamente:

 -Não há de que, meu filho.

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