DOIS

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ESTAVA DECIDIDO. EU IRIA ATÉ O Acampamento Elemental querendo ou não, e o fato de que apenas dois dias depois da conversa que eu tivera com meus pais as criadas terem começado a arrumar minhas malas foi o que fez com que minha ficha caísse de uma vez por todas.

No silêncio do meu quarto, eu só conseguia pensar no quanto tudo aquilo era injusto e no quanto estava irritada. Sim, eu sabia que o ocorrido durante o chá de mamãe tinha sido algo arriscado e muito perigoso e também sabia que havia sido uma tremenda pateta em ter me deixado levar pelas provocações de Lumina mesmo tendo plena consciência da instabilidade do meu controle quanto ao meu Dom.

Mas era tão difícil para mim.

Encarei minhas mãos durante tanto tempo que quase esperei que um buraco se abrisse em cada palma. Me sentia uma idiota. Não conseguia de maneira alguma compreender como, de um dia para o outro, a relação de total entrega e confiança que havia entre mim e o meu Dom tinha se transformado em receio, frustração e medo. Receio de causar mais danos, frustração por não ser mais a princesa segura que controlava a água com um simples estalar de dedos e medo de ter me perdido para sempre.

Deixei a cabeça tombar contra um travesseiro. Eu só queria chorar, chorar e chorar até virar uma enorme poça no de água no chão. Não tinha ninguém com quem conversar e nada que pudesse arrancar a sensação de perda do meu peito. Lumina no fundo tinha razão: eu era irrevogavelmente uma fracassada.

Me levantei da cama, tendo um vislumbre de meu reflexo no espelho pendurado na parede.

Meu cabelo branco descia em ondas despenteadas até a minha cintura e somando-o às olheiras sob os meus olhos e o tom opaco e pouco saudável da pele que antes resplandencia em um orgulhoso marrom dourado me deixava com a aparência exata de um fantasma.

Eu estou horrível.

Inesperadamente, o pensamento me alegrou. Era bom que eu estivesse nesse estado. Só assim iria sair de Aquatick deixando a imagem de sofrimento com a qual esperava que meus pais lembrassem de mim durante o tempo em que eu estivesse  fora.

Segurei uma ponta de cabelo esbranquiçado entre os dedos. Nunca me importei com o comprimento, e como mamãe usava o dela longo, imaginei que seria bom que eu o usasse assim também. Mas eu nem gostava do meu cabelo. E mantê-lo desse tamanho dava muito trabalho para alguém que nem gostava do próprio cabelo.

A ideia surgiu em minha mente como alternativa ao estado de inércia em que me encontrava. Eu não podia fazer nada quanto ao acampamento, mas e quanto ao meu visual? Se eu  não estava satisfeita comigo mesma, eu tinha o direito de mudar.

Fui até a escrivaninha no canto do quarto e abri a gaveta do meio, revelando uma longa tesoura de prata. Sentindo o peso do instrumento em minhas mãos, voltei ao espelho logo em seguida. Sem pensar duas vezes, segurei um monte de cabelo nas mãos e cortei tudo de uma vez. Pareceu passar-se horas em que somente o ruído da tesoura cortando e o som abafado de meu cabelo caindo no chão podia ser ouvido, até que dei o trabalho como concluído.

No queixo. Meu corte de cabelo atual agora batia no queixo. Para alguém que nunca havia cortado nada na vida, gostei bastante do resultado. Estava me sentindo ousada e aquele ato de rebeldia tinha me dado a força de que eu precisava para encarar tudo o que estava acontecendo de cabeça erguida.

Era uma despedida à altura de tudo o que eu havia deixado de ser em curtos dois meses. A princesa perfeita. A poderosa controladora da água. A garota que não temia a nada. Tudo isso tinha sido deixado para trás.

Agora eu era só a Pérola, em busca de uma resposta.

Sorri comigo mesma. O reflexo no espelho sorriu de volta.


* * *


Mamãe ficara boquiaberta ao dar de cara com o meu novo corte de cabelo naquela tarde em que se sucederia a minha ida ao Acampamento Elemental. Estava tão chocada que não conseguira pronunciar uma palavra sequer, mas estava claro para qualquer um que a visse que ela não  havia ficado nem um pouco satisfeita. Já papai sorria de orelha a orelha, me dando tapinhas encorajadores nas costas.

Ele estava feliz, então talvez eu também devesse estar. Mas só sentia o pânico e a ansiedade crescendo em meu estômago.

— Você vai ver que tudo correrá bem. — disse papai, segurando minhas mãos enquanto alguns homens colocavam minhas malas dentro da carruagem. — Não tem motivos para se preocupar. Daqui alguns meses você vai estar de volta, bem há tempo para o seu aniversário. Em breve se tornará a Representante Elemental de Aquatick e tudo vai ser ainda melhor do que era antes de... Bem, você sabe.

Antes de eu me tornar um fracasso.

— Sim. — eu disse, a palavra saindo em uma curta respiração. Soltei suas mãos. — Acho que está na minha hora.

Ele assentiu com a cabeça, me puxando para um abraço apertado.

— Você vai acabar gostando de lá. — disse papai, tentando soar positivo. — Só não volte com nenhum namorado.

Tive que rir da possibilidade.

— Isso não será problema.

— E veja se não faz mais nenhuma outra loucura. — mamãe completou, parada de braços cruzados atrás de papai. — Eu odiaria ter que receber de volta uma filha careca.

— Vou seguir seu conselho, obrigada. — sorri, apesar de não estar no clima. Pensei se eu deveria me inclinar e lhe dar um abraço também, mas ela não parecia estar contente o suficiente comigo para uma demonstração de afeto. No fim, resolvi ignorar a questão; se ela quisesse uma despedida adequada, não teria ficado o tempo todo de braços cruzados me olhando como se eu tivesse criado uma segunda cabeça apenas por ter cortado o cabelo.

Me virei em direção à carruagem, aceitando a ajuda do criado que estendia a mão para me auxiliar a subir no veículo. Assim que entrei e a portinhola atrás de mim foi fechada, coloquei a cabeça para fora da janela, acenando.

— Adeus! — exclamei, sentindo o frio na barriga aumentar. Estava acontecendo. Eu estava saindo de Aquatick pela primeira vez. E sozinha.

— Adeus, Pérola! — meu pai disse, acenando de volta.

Mamãe também acenou, seus olhos brilhando com o que pareciam ser lágrimas. Quando o cocheiro deu partida e os cavalos começaram a puxar a carruagem, pensei se não deveria ter lhe dado um abraço, afinal.


Água e Fogo [EDITANDO E RESPOSTANDO]Where stories live. Discover now