Entrando na Rotina

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- Você está obedecendo a sua tia?

- Estou, mãe.

- Você está indo bem na escola?

- Estou, mãe.

- Você está fazendo o serviço direito?

- Estou, mãe.

Dona Marli a toda hora telefonava fazendo as  mesmas perguntas e ouvindo as mesmas respostas. Depois o telefone ia para tia Tereza passar-lhe o relatório completo. Mas Kelly estava com a consciência tranquila: ela estava mesmo procurando se adequar o melhor possível a sua nova situação. Já havia conseguido se encaixar bem na rotina da casa, e cumpria razoavelmente os horários estipulados. Já estava até conseguindo executar os serviços com mais presteza, agora que aprendera, e não deixava de distrair-se de vez em quando com a TV e o computador, bastando para isso pedir licença antes. Só a incomodava saber que não era alguém da casa, apenas morava na casa, e isso por vezes a deixava triste e pensativa. Achava meio estranho que os filhos e outros parentes de tia Tereza fizessem visitas e mal a cumprimentavam, mas afinal não era ela quem eles vieram ver. Sua posição ali parecia mais a de uma empregada do que alguém da família. Ela achava estranho ter que comer na cozinha, mas afinal a própria tia Tereza também preferia comer ali e raramente usava a mesa da sala. E colocando bem os pesos na balança, nada daquilo era injusto, pois ela tinha que pagar de alguma forma a sua estadia, e também sabia que tia Tereza pagava metade da escola que ela frequentava. E se mais ainda precisasse ser dito, ela não estava ali por acaso, mas por conta do que fizera antes.

Também já estava se acostumando a ter que desfilar pela casa com aquelas vestidinhos furrecas e curtíssimos enquanto fazia faxina. Sentia vergonha quando chegava alguma visita, mas bem feito, quem mandou ter feito? A toda hora sentia os olhos de Rogerinho passeando pelo seu corpo e procurando detalhes quando ela se esticava toda para limpar um cantinho de algum móvel, se abaixava ou subia uma escada. Isso a incomodara um pouco no início, mas agora não se importava mais, pois estava sabendo que a tia o havia incumbido de vigiá-la de vez em quando, e aquela curiosidade toda era normal para um o moleque de 12 anos. Gostava de conversar com ele, o garoto era bem esperto, dizia coisas inesperadas e podia tanto fazê-la rir quanto deixa-la de saia justa.

Na escola as coisas iam a contento, e ela estava se dando bem com as novas amizades. Só o que atrapalhava eram as restrições a que estava submetida, os colegas não entendiam porque ela tinha que ir direto da escola para casa, e ela queria manter seu castigo em segredo. Mas com certeza alguns mexericos já estava provocando. Quando naquela quinta-feira recebeu o convite para ir à festa do Thiago, ficou com o coração na mão: a tia ia deixar? Se não deixasse, que desculpa ia inventar?

Colocando no rosto seu melhor sorriso, ela perguntou à tia se podia ir. A tia fez um suspensezinho, e respondeu:

- Quem é esse Thiago? Onde vai ser a festa?

Kelly respondeu cruzando os dedos, e a tia deu o veredicto:

- Pode ir. Mas de volta à meia-noite!

Kelly quase explodiu de alegria: afinal, as coisas não eram tão feias quanto sua mãe havia dito. A mãe mesmo havia comentado que se ela se comportasse, a tia ia dar mais abertura, era isso o que estava acontecendo. Foi correndo confirmar com os colegas sua presença, e arrumou uma carona para estar de volta á meia-noite.

Com grande alegria Kelly vestiu uma roupinha incrementada que pela primeira vez saía do armário de tia Tereza, onde sua bagagem estava sob custódia desde que ela chegara. Pediu um pouco de maquiagem emprestada de Raissa, e esperou sua carona chegar achando a noite linda. A festa estava ótima, e Kelly estava fazendo bastante sucesso. Dançou todas e bebeu algumas. E o melhor de tudo: Anderson estava dando bola pra ela!

Assim que tiveram uma chance, ela e Anderson foram para um cantinho e trocaram muitos amassos. Ele a chamou de gostosa e ela foi às nuvens. Só voltou à terra quando olhou o relógio: era quase meia-noite! Despediu-se de Anderson, desculpando-se por ter que ir embora e prometendo ligar no dia seguinte. Correu para onde estava seu carona, só para descobrir que ele não estava com muita pressa. Sentado em uma roda com amigos, conversava despreocupadamente. Outras meninas que também iam aproveitar a carona foram chegando, mas igualmente sem pressa: afinal, que diferença faz meia-noite e dez, meia-noite e quinze, meia-noite e meia?

Kelly estava ansiosa, mas não podia fazer nada: o carro era dele e ninguém mais estava com pressa ali. Quando finalmente embarcaram, já passava da meia-noite. O rapaz percorreu sem atropelo as ruas vazias, despedindo-se com muitas palavras de cada passageiro que desembarcava, em total ignorância da angústia de Kelly. Quando chegaram à casa de tia Tereza, o relógio já marcava meia-noite e meia. Kelly procurou convencer-se de que a tia ia dar um desconto, mas encontrou-a com a mesma cara zangada que já vira antes:

- Não cumpriu o horário! Por causa disso, não vai sair no próximo fim de semana.

Kelly baixou a cabeça, sem ânimo para inventar desculpas esfarrapadas.



Kelly Está MudandoOnde histórias criam vida. Descubra agora