O Ônibus

22 2 1
                                    

Mais um raiar do dia, a noite dá lugar aos primeiros raios de sol, ainda pálidos, escondidos pelas brumas das primeiras horas do orvalho matinal. Mais um dia começa e eu aqui, parado, esperando ansiosamente a primeira viagem.

Meu cobrador e motorista se acomodam, as primeiras pessoas entram, sedentas por um bom lugar, de preferência na janela, de onde possam observar as mesmas ruas ou recuperar um pouco do sono perdido.

É dada a partida, nos pontos seguintes os últimos lugares vagos são ocupados e eu começo a lotar, algo comum para aqueles que, como este carro velho, fazem a longa viagem até o centro no horário da manhã. Pessoas em pé e sentadas – quase todo dia as mesmas, é raro alguém em quem eu nunca tenha colocado o retrovisor –, algumas dormem, outras refletem sobre suas vidas, remoendo problemas enquanto viajo, à espera daquilo que trará sentido a mais este dia.

E lá vem ela, na mesma rua, pontual como sempre. Seu já conhecido andar massageia minha já cansada carroceria. A 'Dama de Negro', é como a chamo, pois, mesmo que ela não esteja trajando algo dessa cor, sempre lembrarei dela dessa maneira. Dito e feito: está inteira em negro, combinando com seus olhos e cabelos, intensificando a atmosfera que a cerca.

Ah esses olhos! Negros e profundos como o mar na mais escura noite de inverno. Esses belos olhos carregam cansaço, reflexos das poucas horas de sono que fazem parte do dia-a-dia desta geração (corrija-me se achar que estou louco, mas parece-me que, quanto mais o homem evolui, mais penosa sua rotina se torna), mas neles não há apenas isso.

Esses hipnotizantes olhos carregam algo mais, a mim parecem demonstrar profunda tristeza, contínua reflexão. Tais olhos não vêem o mundo como é. Tenho a impressão de que enxergam além dele, vão até a essência de cada ser a seu redor e ali compartilham solidão e tristeza.

Há um quê de sagrado em seu olhar, desperta em mim uma gigantesca curiosidade: em que será que ela tanto pensa, perdida em devaneios, escondida a um canto, enquanto seus negros olhos vasculham distraidamente o caminho de cada dia? Daria uma roda para descobrir!

De uns tempos para cá, algo nela mudou... minha Dama de Negro parece não ser mais apenas minha. O vazio que refletia sua escuridão, de alguma maneira, foi preenchido. Seus olhos de antes mostravam a busca por algo, talvez até desconhecido, mas que ela sabia que ali faltava. Agora,  têm o brilho de quem encontrou o que procurava. Mas também uma tristeza, que indica que o objeto encontrado ainda está distante, mesmo que presente em seu coração.

Pelo reflexo de um de meus espelhos a admiro, tentando descobrir por que essa mulher tanto me fascina. Três anos atrás a vi caminhar pela primeira vez ao meu encontro e, desde então, a analiso, detalhada, apaixonadamente, com a mesma perícia de um médico, procurando saber quais males a atormentam.

Seu olhar (não há como falar dela sem notar seu olhar) esquadrinha tudo o que a cerca, é como se prestasse atenção a cada detalhe, guardando-os na memória, classificando-os e enviando-os para locais específicos de sua mente catalogada. Depois de preencher suas lacunas com pensamentos e detalhes de tudo aquilo observado, minha Dama de Negro volta sua atenção para si mesma, fecha-se em sua concha, seus olhos perdem o brilho da observação e se tornam turvos de reflexão interior. Seu mundo está sendo analisado, seus defeitos repensados, para então ser reestruturado de uma maneira só dela, sonhadora, única, por isso tão especial.

Ainda bem que meu motorista me guia ou me perderia na imensidão daquele olhar, voltado para seu interior, me convidando a um mergulho nessa vastidão, a me perder em seus pensamentos confusos e, ao mesmo tempo, tão organizados, organização que só ela entende, em que só ela se encontra.

A música é seu guia, sempre com os fones no ouvido, o que contribui ainda mais para a criação de seu próprio mundo, como a trilha sonora de seu dia-a-dia. O pouco que consigo ouvir, captado de seu aparelho pela minha lataria, me mostra uma personalidade intrigante: letras reflexivas e ritmo forte. O que sua aparência também transmite, é como se tudo nela fosse feito cuidadosamente para ser discreto e chamasse atenção exatamente pelo excesso de discrição.

Agora nela percebo a completude daquele que encontrou uma razão de ser. Sua música agora muda, assim como o mirar de seu olhar, ambos transparecem paixão, um amor sofrido, mas ainda assim um amor, que preenche o coração em sua plenitude e arrebata qualquer sensação indesejada.

Poucos a notam, alguns a miram com desejo, mas ela a todos despreza, perdida em seu interior, acorda somente próxima de seu destino. Mas, mesmo assim, posso afirmar que está semi-desperta. Em sua expressão é evidente a falta de interesse pelo mundo que a cerca.

Nossa jornada juntos se aproxima de um fim: ela já impaciente com a infinita demora – talvez essa viagem truncada e sufocante seja a parte mais difícil de seu dia – e eu peço ao divino um pouco de congestionamento, ou até mesmo um pouco mais de lerdeza de meu motorista, para que passemos mais alguns minutos juntos.

Ela nem imagina que a observo com tamanho interesse, talvez pense que ninguém a note, mas dela não consigo tirar meus pensamentos, impressionado com tamanha beleza e simplicidade em um ser tão complexo e reflexivo. Ela, perdida em devaneios, caminha até a porta, os minutos passaram mais rápido do que eu imaginava. Chega no primeiro degrau, olha para meu cobrador e então vem o ápice de meu dia: o costumeiro sorriso, que iluminaria a manhã mais nebulosa, encantador, sincero, inesquecível. Só então ela desce, levando consigo minha alegria. Vejo-a se afastar aos poucos, já com saudade, agora me resta mais um longo dia e a esperança de, na manhã seguinte, reencontrá-la, de fazer novamente a análise de seu espírito, através desses belos e negros olhos que, para sempre, me dirão muito (e tão pouco) daquela que dá sentido a minha existência.



You've reached the end of published parts.

⏰ Last updated: Dec 14, 2015 ⏰

Add this story to your Library to get notified about new parts!

O ÔnibusWhere stories live. Discover now