Primeira parte

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O SANTO DOS VICIADOS

A TRASH NOVEL©

(ou Deve haver um jeito quântico de foder com tudo isso)

Por Octávio Brandao

© Octavio Brandao, 2015


O santo dos viciados - a trash novel ou deve haver um jeito quântico de foder com tudo isso by Octávio Brandão is licensed under a .

Primeiraparte

É! As coisas haviam ficado pretas pra mim! Foram dois os que me atacaram. O primeiro soco perfurou minha bochecha, enfiando barba suja através dela, na gengiva onde meu primeiro molar superior direito deveria estar. O dente deslizou como se fosse um drope sabor sangue e soco-inglês pela língua amargada.

Quando o efeito de estática de rádio mal-sintonizado passou eu ainda estava de olhos abertos e já podia distinguir a aparência dos dois vultos de calça camuflada, coturnos e suspensórios.

- Filho-da-puta, vagabundo!

- Quer um trocado pra encher a cara? - careta de escárnio.

As palavras saíam com tanta naturalidade que por quase um segundo achei que aquilo era tão normal quanto varrer a calçada na frente de casa.

A noite persistia apesar dos bem-te-vis.

Eu estava travado de medo! As endorfinas surtiam seu efeito analgésico, porém, já começavam a ser superadas pela alta quantidade de ACTH* e cortisol* junto com adrenalina em meu sangue, obrigando-me a hiperfocar nas chances de sobrevivência.

Não houve tempo pra nada. O careca bicou minha fuça com o coturno mais brilhante que eu já havia visto e, movido por um atavismo sádico, o outro foi tomado pela tentação de me sobrepujar.

*A corticotrofina, hormona adrenocorticotrófica ou hormônio adrenocorticotrófico (Wikipedia), geralmente abreviado para a sigla ACTH (Adrenocorticotropic hormone em inglês), é um polipeptídeo com trinta e nove produzido pelas células corticotróficas da . Atua sobre as células da camada cortical da , estimulando-as a sintetizar e liberar seus hormônios, principalmente o , também estimula o crescimento desta camada.

*2 O Cortisol é uma hormona corticosteróide da família dos , produzido pela parte superior da glândula supra-renal (no córtex suprarrenal, porção fasciculada ou média) diretamente envolvido na resposta ao . (...) Considerado o hormônio do stress, ativa respostas do corpo ante situações de emergência para ajudar a resposta física aos problemas, aumentando a pressão arterial e o açúcar no sangue, propiciando energia muscular. Ao mesmo tempo todas as funções anabólicas de recuperação, renovação e criação de tecidos são paralisadas e o organismo se concentra na sua função catabólica para1 a obtenção de energia. Uma vez que o stress é pontual, superada a questão, os níveis hormonais e o processo fisiológico volta a normalidade, mas quando este se prolonga, os níveis de cortisol no organismo disparam.

- Você deveria sumir daqui. A culpa da merda que tá o país é toda sua!

- O cara prefere tomar no cu aqui na cidade grande a ir pra outro lugar. Isso aí, se fode aí, seu

bosta!

- Vai pro meio do mato! Lá é que é lugar de bicho.

O careca destilava toda a revolta que sentia por causa da infância ao lado do pai, que agonizara numa cama lambuzada de urina e bosta decorrente do glioma desenvolvido no trabalho.

Minha surra havia sido uma carnificina rembrantesca!

Fui pego pela gola da camiseta, que não cedia em rasgar, e meu corpo anêmico foi arrastado por um daqueles jamantas enquanto o outro arrancava meus sapatos usados comprados por dois reais no viaduto que liga a Brigadeiro à João Mendes.

- Você não merece nem a roupa que nós fabricamos para você! Seu merda!

Este outro, o mais frio e não tão apaixonado, era guiado simplesmente pelos hormônios misturados ao sentimento de injustiça social e hard-core. Morreria uns meses mais tarde por causa de um silencioso aneurisma de aorta abdominal, quando, numa manhã de domingo começa a sentir dores na região lombar e no abdômen, porém, por achar que a dor é proveniente das noites errando por São Paulo, ela é ignorada, sua vida também...

Já estava nu, com minhas roupas espalhadas pela 14 Bis, todo fodido quando ouvi os gritos de uns travecos que estavam por ali, dirigindo-se aos carecas a roucos brados.

- Aí, ô veado filho-da-puta! Você é o próximo, seu merda! – retruca o condenado com dedo em riste.

As sombras dos travecos correndo moldadas na cintilação urbana não eram nada femininas.

Entre a troca de insultos reverberando no concreto do viaduto meu estado foi ignorado por um breve momento. Naquela hora os objetos do ódio eram os bravos cavalheiros-damas. Foi quando consegui alcançar minha peixeira enferrujada solta perto das minhas calças. Era o tal do agora ou nunca operando seu milagre.

Com todos os músculos retesados e o maxilar travado, num último impulso de sobrevivência, de chofre, levantei-me usando a força ascendente para cravar a dita-cuja no papo do canalha, e ver seus olhos estuporados delatando que ele sentia a língua espetada em seu palato. No segundo seguinte – de confusão e cegueira - o outro já possuía um rasgo que ia da maçã direita do rosto até o lado esquerdo do queixo, tendo sido lacerada sua narina direita e o lábio - não sem que eu tivesse tomado um soco de raspão na nuca e um chute na bunda.

Aí é que os travecos viram a possibilidade de vantagem e correram em nossa direção como zagueiros de futebol americano. Os carecas desapareceram desesperados deixando para trás um borrão de sangue no pálido fim da madrugada do centro.

- Gente...! Que sacanagem! – disse levando a mão à boca.

A feminilidade barbada ressurgia naqueles semblantes. Ao se agacharem pude sentir o cheiro de pica com lavanda, baba e estômago (este último é aquele típico de quem não come nada e bebe muito, há muito).

- O que dá na cabeça desse povo pra fazer um negócio desses? – ela estava atônita.

- Meu Deus! Qual é seu nome? Michelli, liga pra ambulância pelo amor de Deus! Amigo, você vai precisar de uns pontos. Mas vai ficar tudo bem.

Os intervalos de consciência se impunham e a noção do tempo havia sumido - a bebedeira, pancadas na cabeça... Eu me levantara apesar do veemente protesto delas.

Em meu cinema particular me diverti vendo meu rosto atônito encarando o nada. Que ator eu poderia ter sido! As órbitas forçando passagem entre as pálpebras arregaçadas, em uma careta tétrica; o corpo nu de onde pendia um pênis enrugado e brilhante de sangue fresco, a mão agarrada firme a peixeira - que de tanto sangue parecia fazer parte da mão. O tempo parou. Foi quando percebi um flash de câmera. Que bela foto, a do jornal marrom: nós, aquelas figuras na 14 Bis - um mendigo e dois travecos, entre roupas em trapos e o cheiro de mijo seco velho. Parecíamos estátuas, tamanha era nossa estupefação. Tudo isso era um manjar para o espírito obsessivamente auto-piedoso e neurótico como o meu.

Um pouco antes de ser tomado pela náusea e pela tontura, um pouco antes de desmaiar entre a multidão que se juntava indignada, pude ouvir os gambés chegando com seu alarde habitual. Agora sim o Sol assumia seu turno enquanto a noite sádica, satisfeita, ia enxotada. A cena se desfigurou.

O Santo dos Viciados - A Trash NovelWhere stories live. Discover now