capítulo único

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Era uma quinta-feira à noite quando eu estava no corredor de café do supermercado próximo ao meu apartamento e eu a vi, deslumbrante, fantástica, superior. Ela cruzou por mim sem aparentemente ter percebido minha existência. Eu ainda era casado e uma aliança em meu dedo denunciava isso. Em seu dedo, vários anéis poderiam provocar confusão.

Na terça-feira seguinte eu retornei ao supermercado e passei pelo mesmo corredor de café com uma esperança de rever aquela menina maravilhosa. Ela não estava ali e eu senti uma espécie de vazio. Onde ela poderia estar? Com quem ela poderia estar? Será que ela percebeu minha presença mas não percebeu ser necessário estar ali para me encontrar novamente.

Na quinta-feira, uma semana depois, eu fiz questão de retornar ao supermercado. Cheguei mais ou menos uma hora antes do horário no qual nos encontramos e passei pelo corredor do café e por vários outros inúmeras vezes na esperança de encontrá-la. Ao final, minha esposa ligou perguntando onde eu estava e o que teria acontecido comigo.

Nos dias seguintes eu inventava motivos para retornar ao supermercado. Várias vezes eu seguia as listas montadas pela minha esposa e propositadamente esquecia algum item para, trabalhosamente, ter que retornar ao corredor de café. A verdade é que meu casamento já se arrastava há tempos e a ausência de filhos tornava o divórcio um ritual inevitável.

Duas semanas depois eu finalmente a encontrei no mesmo corredor de café. Ela estava vestida de um modo diferente, com uma saia e uma blusa mais social. Eu nem me lembrava de como ela estava vestida naquele primeiro encontro, porque a lembrança já estava mesmo desbotada de tanto eu pensar nela e rever inúmeras vezes aquela mesma lembrança.

Eu a vi em um instante em que seus olhos estavam em mim. Eu nem sei descrever se ela me via ou se apenas me enxergava, mas aquela situação me fez o coração disparar e parecer estar saindo pela garganta. Eu acho que não me sentia desse modo desde a adolescência. Ela caminhava na minha direção e inevitavelmente percebera o efeito que exercia sobre mim. E isso claro era fantástico!

Na semana seguinte, eu e ela nos encontramos novamente. Ela estava com roupas mais esportivas e parecia estar chegando de uma academia. Ela percebera minha presença e sustentara seu olhar sobre mim.  Eu sentia até uma certa fraqueza nas pernas, certamente efeito daquele encontro cataclísmico sobre meu sistema circulatório. E isso era fantástico!

A cada uma das semanas seguintes eu fui percebendo mais detalhes dela. Em uma delas, eu percebi que seus olhos eram verdes. Em outra, eu percebi que ela tinha preferência por brincos pequenos e discretos. Em outra ainda, dos tantos anéis que eu havia visto em momentos mais apressados, eu percebi uma aliança na mão direita. E uma delicada correntinha de ouro em seu colo.

Ao mesmo tempo, o meu casamento foi ruindo, nem tanto pela menina do corredor de café e muito mais pelo próprio casamento e pela minha esposa. Aquele distanciamento evitável mas de certo modo intrínseco se impondo ao longo dos anos. Um certo desprezo se misturando com uma mágoa crescente que acinzentava até mesmo as melhores lembranças do passado.

Em uma semana na qual a terça fora marcada pela assinatura definitiva o divórcio de um cartório próximo de um eu seguiria morando, a quinta fora marcada por um primeiro contato. Apesar de nem eu nem ela sermos mais adolescentes, aquela distância persistente somada a um interesse teimoso acabara por nos empurrar para um primeiro cumprimento.

Um simples aceno com as sobrancelhas. Ela fez esse aceno. Sempre as mulheres. Eu me recordei instantaneamente de um professor comentando "são sempre as mulheres que escolhem os homens com quem querem ficar". Eu respondi ao aceno e quando percebi aquela janela semanal já se fechava. E daí apenas na semana seguinte para que eu tivesse uma nova chance.

O divórcio se consolidou e não houve tentativas nem minhas nem delas de um novo começo. Eu soube com o tempo que ela já estava iniciando um novo relacionamento. Eu segui sozinho, não esperando por alguém, não aguardando por algo, apenas segui sozinho. Eu precisei de um tempo não para me acostumar com a falta dela, mas para esquecer os planos em comum.

E a menina do corredor de café? Nós nunca mais nos encontramos. Eu segui indo ao supermercado naqueles horários das quintas entre o final da tarde e o início da noite tentando encontrá-la. A verdade é que eu nunca mais a vi. Aquela janela semanal que utilizávamos para nos encontrar se fechou. E ela sabia de mim, ela tinha percebido minha existência. Aquele aceno com as sobrancelhas não fora um acidente. Ela sabia de mim. Ela percebera a janela.

A menina do corredor de caféWhere stories live. Discover now