Em Algum Lugar

79 12 8
                                    

Isso já havia acontecido antes; quando meu corpo entrava em um sono repentino e as minhas lembranças vagavam entre dois mundos: o real e o subconsciente.

E aqui estava eu. Parado na cozinha, revivendo um momento comum dentro da minha vida.

- Coma as cascas com moderação, Anne, a patroa não pode saber. - Mary disse à sua filha.

Mary era a nossa cozinheira desde sempre. Pelo menos, desde que eu me lembre. Ela preparava os melhores pratos e sempre os servia para mim. Ela tinha uma filha, Anne, uma garotinha de cinco anos de idade e um dente faltando.

Ambas eram de uma classe menor da sociedade, e mamãe sempre fora rígida quanto a isso, pois ela não gostava de pessoas "inferiores" dentro de seu império.

Isso servia para a pobre Mary e sua filha Anne, elas tinham o mínimo para sobreviver. E a pobre criança era proibida de pegar até mesmo uma pequena uva que jamais faria falta em uma geladeira lotada.

Lembro-me de suspirar e adentrar a cozinha, andando até onde elas estavam. Mary se assustou comigo e tentou disfarçar que sua filha estava comendo os restos das cascas das laranjas.

Minha expressão melancólica se agravou e eu peguei a casca da mão da menina, jogando de lado.

- Há uma geladeira ali, querida - disse eu, baixando-me para olhar para Anne.

A menina estava prestes a chorar, creio que imaginando que eu fosse brigar com ela.

- Pegue o que quiser e quando quiser - disse. - E se mamãe chegar a dar falta de algo, fui eu que peguei.

Endireitei a postura e olhei para Mary.

- O-Obrigada, Sr.Deal...

- Damon. - corrigi. - Qual é?! Você literalmente me alimentou por toda a vida, e mamãe é uma orgulhosa. Alimente sua filha quando quiser.

Eu caminhei até a enorme porta metálica da geladeira e abri, puxando uma lata de chantilly e uma maçã. Virei-me e saí da cozinha sem mais uma palavra.

Caminhei de volta pelo corredor mal iluminado da casa; caminhei mais um pouco, e mais e mais...

Parei de andar quando o que deveria ser a minha sala de estar agora era uma floresta de árvores gigantes.

- Psc! Psc! - ruídos balançaram através das copas das árvores.

Olhei para trás de mim, na esperança de reencontrar o corredor para a cozinha, mas só havia outra parte de floresta e mais floresta.

O ar me faltou enquanto eu tentava compreender onde estava, talvez eu já tivesse vindo aqui...

Não. Não existiam árvores assim em Massachusetts. Mas se eu nunca tinha vindo aqui... como eu poderia ter essa lembrança?

- Psc! - o ruído aconteceu outra vez.

- Quem está aí? - elevei o tom, pondo as mãos em concha ao redor dos lábios. - Onde eu estou?

Rodopiei nos calcanhares enquanto capturava as folhas balançando de uma árvore a outra. Havia alguém pulando de galho em galho. Alguém ou alguma coisa.

Engoli a bile que me subiu a garganta enquanto limpava as mãos suadas nas laterais das calças.

- Por favor! - clamei.

- Deveria se perguntar por que está aqui - fui respondido por um eco.

Balancei a cabeça, atordoado, olhando de um lado para o outro.

- É... Por que estou? - indaguei. - Onde estou?

- Você está porque está. E está em Algum Lugar. Já imaginou que as suas perguntas são tão óbvias?!

- Bem, acho que isso não responde às minhas perguntas.

- Pense, Damon... - o eco sussurrou.

- Espera... Como sabe o meu nome?

- Porque está escrito em você.

- Escrito em mim? - passei as mãos pela testa tentando sentir algum vestígio de tinta, quando não senti, analisei meus braços com apreensão.

- Sim, a sua alma grita "Damon"! - disse, seguido por um riso.

- Isso é psicodélico. Mas se você existe mesmo, estaria aqui na minha frente.

- Eu existo. Por isso que não sou tola de ir até você. Tenho inteligência.

- Tola... - murmurei para mim mesmo. - Então você é uma garota!

- Até um surdo perceberia pelo timbre da minha voz, Damon.

- Isso é injusto. Sabes o meu nome. Mas eu não sei o seu.

- Então chame-me de Perdida. - disse.

- Certo, Perdida. Agora pode me dizer onde estou?

- Você está em Algum Lugar, Damon. Eu já te disse isso.

- Mais precisamente...?

- No lugar das Almas Perdidas. Você é um perdido agora, Damon. Uma vez que se entra em Algum Lugar sua estadia deve ser completada.

- Uma Alma Perdida? Está falando sério? - mordi o interior das minhas bochechas. Eu só poderia estar ficando louco. Louco de atirar pedras na lua! - Me beslique! Isso é o pior dos sonhos... Harvard está me fazendo alucinar.

Uma espetada no meu braço me fez estremecer e hesitar para trás.

- O QUÊ?

- Pediu-me para beliscá-lo. - uma figura pálida estava pairando a poucos centímetros do meu rosto.

- V-Você... - gaguejei, fitando-a.

- Sou Perdida - a alma esticou sua mão. - Não vai conseguir me cumprimentar mesmo, literalmente, você passaria por mim. Só eu posso se tocar.

Ela era um espírito, uma alma! Mas... Como?

- Preciso de remédios - murmurei.

- Damon, não haja como se estivesse ficando louco. Porque você já é um, mas um louco perdido. O que te faz bem-vindo a Algum Lugar.

As faces gélidas de Perdida se contorceram nos cantos. Ela estava tentando sorrir.

- Você não sabe sorrir. - falei sem pensar.

Sua tentativa de sorriso caiu.

- Já me disseram isso. Almas perdidas não podem mentir. Nós não somos espíritos felizes, tentamos viver em harmonia, apenas isso. Então um sorriso verdadeiro não pode existir.

- Mas... Se eu sou um perdido...

- Um Perdido, não uma alma. Você tem que morrer no mundo real para poder se tornar uma alma perdida. Mas no seu estado atual... - Perdida cortou suas palavras no meio da fala e se virou repentinamente.

- Estado atual? Como assim?

- Lá lá lá - Perdida cantarolou em tom elevado.

Suas pernas brancas agitaram-se e ela se virou no ar.

- Vamos! Tenho que te levar para o centro!

- Centro? Que centro?

Suas mãos agarraram minha camisa e ela me puxou pelo chão da floresta.

- Ei! - gritei, sentindo meus pés queimarem em contato com a velocidade e o chão.

Corremos por metade das árvores e folhas espalhadas. Perdida me puxou pelo interior de uma caverna de paredes azuis e depois me derrubou de uma penhasco de campos de girassóis ressecados.

Suas pequenas e, ao mesmo tempo, fortes mãos me agarraram pelos ombros e me levantaram do chão.

Como ela mesmo disse, eu não podia sentí-la. Era como ser levado pelo vento a alguns pés de altura.

Pousamos sobre um cume de pedras, bem no centro de uma rua, pelo que parecia ser de casas de vidro.

- Voilà... Estamos em Algum Lugar, Damon.

Almas PerdidasWhere stories live. Discover now