Aversão Profunda

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Rafa não suportaria mais tempo sem comer. A greve de fome precisava acabar e Cris sabia como fazê-la.

''Tudo não passa de um mal-entendido'', pensava Cris, provando o molho picante favorito de Rafa que fizeram questão de servir no casamento. ''A comida perfeita para o dia perfeito'', dizia provando com o dedo, sempre que Cris preparava o cozido.

A longa mesa de jantar estava arrumada. Não acendeu velas, pois sabia que Rafa não gostava do cheiro. A luz baixa seria o suficiente para um clima íntimo.

''Senti sua falta enquanto eu cozinhava'', disse Cris servindo-se do cozido.

E Rafa, nada dizia.

''Olha, é bom você raspar o prato! Saco vazio não para em pé, e aliás, adivinha o que tem pra sobremesa?''.

E Rafa, nada comia.

Cris tentava interpretar a expressão apática de Rafa, mas não notava qualquer sinal.

''Amor, isso é injusto. Não faz isso comigo.''

E Rafa, nada fazia.

''Já emagreceu tanto. Tudo bem se zangar comigo, mas não pode se prejudicar assim."

E Rafa, nada.

Pânico e razão trocam olhares.

''Quer saber? Não vou tirar essa mesa até você se alimentar", disse Cris bebendo da taça de vinho cheia em um só gole.

O silêncio de Rafa era o espelho no teto do motel que nunca foram juntos.

Pânico e razão fornicam.

''Quem mandou não me procurar mais?'', disse Cris jogando a taça de cristal na parede.

Pânico e razão dividem um cigarro.

O ataque destruiu um porta retrato com a primeira foto do casal. ''Desculpe, amor. Vou limpar isso.''

Os cacos da ira foram limpos e Cris foi ao banheiro. Cremes e loções foram espalhadas por todo corpo que, após o banho, é coberto apenas por um robe de seda.

''Não precisa comer agora, mas sei de uma coisa que você não resiste'', disse Cris despindo-se, enquanto se dirigia ao quarto à espera de Rafa, que nada fez.

***

Suor e culpa lhe gelavam a espinha. Cris tremia com o abandono e seus olhos ardiam como se a transpiração formasse uma banheira de cloro. O verão era ignorado.

Adormeceu.

***

Cris abriu um tímido sorriso ao acordar com a voz de Rafa, mas a alegria se esvaiu quando identificou a gravação personalizada da secretária eletrônica no início da chamada.

Era Lu, alertando sobre seu atraso na academia. Cris partiu de casa levando uma pequena mala. Não foi para a academia, mas para a casa de Lu.

***

Uma semana se passa até Cris decidir voltar para casa. ''Te entendo, mas você precisa resolver isso.'' Foi o conselho de Lu.

Confiante e sem esquecer-se da má alimentação de Rafa, comprou frutas, pães e leite fresco para um reforçado café da manhã de reconciliação.

Cris preparava o café evitando ruídos, não queria estragar a surpresa. Assim que levou a comida para a mesa, viu Rafa no mesmo lugar do jantar anterior. Não estava só. Vermes, larvas e moscas purulentas lhe faziam companhia num banquete de mofo e repulsa.

''Chega!'', gritou Cris, arremessando uma grossa garrafa de leite em Rafa. A nata empelotava o sangue que fugia pela abertura na testa da vítima. Formigas e baratas se afogavam formando um estrogonofe de insetos. Cris sentia o mesmo prazer do dia da traição.

***

Jamais tinha assassinado alguém. Não sabia como esconder um cadáver, mas sabia que o armário do quarto das crianças era grande o suficiente para o corpo desnutrido de Rafa.

''Que nossos filhos sejam saudáveis'', pedia a Deus todas as noites, mas agradeceu ao diabo por não tê-los.

Um armário vazio e a cova de uma piscina inacabada no quintal seriam os ingredientes do funeral.

Após semanas de calor, a noite seria de muita chuva e a natureza faria o sepultamento. Mesmo na cólera, um apreço ainda existia e Cris não podia lhe dar adeus assim. Fechou-se no armário junto a Rafa e com pesar dizia: ''Me perdoa''.

A lama preenchia a cova, soterrando o leito de um último abraço; e antes que Cris perdesse a consciência, ouviu uma voz. Em meio a chuva, Rafa dizia: ''Não''.


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