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INTERESSANTES E INSTRUTIVAS TRIBULAÇÕES DE UM PERSA
NOS SUBTERRÂNEOS DA ÓPERA

(Narrativa do Persa)
O próprio Persa contou como tinha inutilmente tentado, até aquela noite,
penetrar na morada do Lago pelo lago; como tinha descoberto a entrada do
terceiro subsolo e como, finalmente, o visconde de Chagny e ele se viram a
braços com a infernal imaginação do fantasma no quarto dos suplícios. Eis a
narrativa escrita que ele nos deixou (nas condições que adiante se precisarão) e da
qual não mudei uma palavra sequer. Transmito-a tal qual, porque achei que não
devia silenciar as aventuras pessoais do daroga9 em torno da morada do Lago,
antes que nela caísse em companhia de Raoul. Se, durante alguns instantes, esse
início muito interessante parece afastar-nos um pouco do quarto dos suplícios, é
apenas para melhor nos levar para ele em seguida, após nos ter explicado coisas
bastante importantes e certas atitudes e maneiras de fazer do Persa, que podemter parecido extraordinárias.
Era a primeira vez que eu penetrava na casa do Lago, escreve o Persa.
Em vão havia pedido ao amador de alçapões — era assim que, entre nós, em persa,
era chamado Erik — que me abrisse as suas misteriosas portas. Ele sempre tinha
recusado. Eu, que era pago para conhecer muitos de seus segredos e truques,
tentara inutilmente, por astúcia, forçar a senha. Desde que eu voltara a encontrar
Erik na Ópera, onde parecia ter escolhido morar, muitas vezes tinha-o espiado,
ora dos corredores dos altos, ora nos do subsolo, ora na margem mesma do
Lago, quando ele julgava estar sozinho, quando subia na barquinha e aportava
diretamente na parede defronte. Mas as sombras que o cercavam eram sempre
demasiado opacas para me permitir ver em que lugar exato ele Óperava a sua
porta na parede. A curiosidade e também uma idéia temível que me tinha vindo
ao refletir sobre algumas frases ditas pelo monstro me levaram, um dia em que eu
achava estar só por meu turno, a me lançar na barquinha e a dirigir-me rumo a
essa parte da parede onde tinha visto Erik desaparecer. Foi então que me vi às
voltas com a Sereia que guardava as bordas daquelas paragens, e cujo encanto
quase me foi fatal, nas condições precisas que seguem. Mal eu havia deixado a
margem, o silêncio dentro do qual eu navegava foi perturbado por uma espécie
de sopro cantante que me envolveu. Era ao mesmo tempo uma respiração e uma
música; aquilo subia suavemente das águas do lago e me envolvia sem que eu
pudesse descobrir por qual artifício. Aquilo me seguia, deslocava-se comigo, e era
tão suave que não me dava medo. Ao contrário, no desejo de aproximar-me da
fonte dessa doce e cativante harmonia, eu me debrucei, por cima da minha
barquinha, em direção às águas, pois não havia dúvida para mim de que aquele
canto vinha das próprias águas. Já estava no meio do lago e não havia ninguém
mais na barca além de mim; a voz — pois agora era bem distintamente uma voz
— estava ao meu lado, sobre as águas. Debrucei-me... Debrucei-me mais... O lago estava calmo e o raio de lua que, depois de ter passado pelo respiradouro da
rua Scribe, vinha iluminá-lo não me mostrou absolutamente nada sobre a
superfície lisa e negra como nanquim. Sacudi um pouco a cabeça com o fito de
me desvencilhar de um possível zumbido, mas tive que ceder à evidência de que
não havia zumbido tão harmonioso quanto o sopro cantante que me seguia e
que, agora, me atraía.
Se eu fosse supersticioso ou facilmente acessível às fábulas, não teria
deixado de achar que estava sendo envolvido por alguma Sereia encarregada de
perturbar o viajante, ousado o bastante para viajar pelas águas da casa do Lago,
mas, graças a Deus!, sou de um país onde se aprecia muito o fantástico para não
conhecê-lo a fundo e eu próprio o havia estudado muito noutros tempos: com os
truques mais simples, uma pessoa que conhece o seu ofício pode fazer trabalhar a
pobre imaginação humana.
Não duvidei pois de que estava às voltas com uma nova invenção de
Erik, mas, uma vez mais, essa invenção era tão perfeita que. ao me debruçar por
cima da barquinha, era mais impelido a descobrir a artimanha do que a desfrutar
seu encanto.
E debrucei-me, debrucei-me... quase a virar o barco.
De repente, dois braços monstruosos saíram do interior das águas e me
agarraram o pescoço, arrastando-me para o abismo com uma força irresistível.
Eu estaria certamente perdido se não tivesse tido o tempo de soltar um grito,
pelo qual Erik me reconheceu.
Porque era ele, e em vez de me afogar, como certamente era a sua
intenção, nadou e me colocou suavemente na margem.
— Veja como você é imprudente — disse-me ele, levantando-se à minha
frente enquanto aquela água do inferno lhe escorria pelo corpo. — Por que
tentar penetrar na minha morada! Não convidei você. Não quero saber nem devocê nem de ninguém deste mundo! Você só me salvou a vida para torná-la
insuportável? Por maior que seja o serviço prestado, Erik acabará, talvez, por
esquecê-lo e você sabe que nada pode deter Erik, nem mesmo o próprio Erik.
Ele falava, mas agora eu não tinha outro desejo que não fosse o de
conhecer o que eu já chamava de truque da Sereia. Ele concordou em satisfazer a
minha curiosidade, pois Erik, que é um verdadeiro monstro — para mim, é assim
que o julgo, tendo tido, enquanto persa, a triste oportunidade de vê-lo agindo —,
é também, sob certos aspectos, uma verdadeira criança presunçosa e vaidosa, e
aquilo de que mais gosta, além de espantar as pessoas, é provar toda a
engenhosidade realmente prodigiosa de sua mente.
Ele pôs-se a rir e me mostrou uma longa haste de caniço.
— E de uma simplicidade total! mas é bem cômodo para se respirar e
para se cantar dentro da água! E um truque que aprendi com os piratas de
Tonquim, que podem assim ficar horas escondidos no fundo dos rios10.
Falei com ele severamente.
— É um truque que quase me matou!... e talvez tenha sido fatal para
outros!
Ele não me respondeu, mas levantou-se diante de mim com aquele ar de
ameaça pueril que lhe conheço tão bem. Não me dei por vencido. Disse-lhe com
clareza:
— Você sabe o que me prometeu, Erik! Parar com os crimes!
— Será que, realmente, cometi crimes? — perguntou com jeito amável.
— Infeliz!... — exclamei... — Você se esqueceu das horas cor-de-rosa de
Mazenderã?
— Sim — respondeu, ficando triste de repente —, prefiro esquecer, masbem que fiz rir a sultanazinha.
— Tudo isso é passado... mas há o presente... e você me deve contas do
presente, visto que, se eu tivesse querido, ele não existiria para você!... Lembre-se
disso, Erik: eu salvei a sua vida!...
E aproveitei de a conversa ter-se enveredado por esse caminho para lhe
falar de uma coisa que, havia algum tempo, voltava-me com freqüência à mente,
— Erik, Erik, jure-me...
— O quê? você bem sabe que não cumpro os meus juramentos. Os
juramentos são feitos para apanhar os trouxas
— Diga-me... Você bem pode, a mim, dizer isso!
— Pois bem, o quê?
— Pois bem!... O lustre... o lustre, Erik...
— O que tem o lustre?
— Você sabe muito bem o que é que estou querendo dizer!
— Ah!, o lustre!... Vou dizer para você... O lustre, isso não fui eu!... Estava
muito gasto...
Quando ria, Erik ficava ainda mais horroroso. Saltou para dentro da
barca chasqueando de maneira tão sinistra que comecei a tremer.
— Muito gasto, caro daroga! Muito gasto, o lustre... Ele caiu sozinho...
Fez bum! E agora um conselho, daroga, vá se secar, se não quer apanhar um
resfriado!... e não volte nunca a subir na minha barca... e, principalmente, não
tente entrar em minha casa... nem sempre eu estou lá... daroga!E seria muito triste
para mim dedicai a você a minha missa dos mortos!
Dizendo isso com um riso sardônico, ia remando de pé na parte traseira
da barca e gingava com um balanço de macaco. Tinha então um aspecto fatal,
com os seus olhos de ouro flutuando na escuridão. Em seguida, não vi mais do
que os seus olhos e, finalmente, desapareceu na noite do lago.Foi a partir desse dia que desisti de penetrar na sua morada do Lago!
Evidentemente, aquela entrada estava muito bem guardada, sobretudo depois
que ele ficou sabendo que eu a conhecia. Mas pensei que devia haver alguma
outra, porque mais de uma vez vi Erik desaparecer no terceiro subsolo, enquanto
o vigiava, e sem que eu pudesse imaginar como. Desde que encontrei Erik
instalado na Ópera, eu vivia num perpétuo terror de suas horríveis fantasias, não
com relação a mim, por certo, mas eu temia tudo dele para com as outras
pessoas11. E quando acontecia algum acidente, algum acontecimento fatal, eu não
podia deixar de dizer a mim mesmo: “Talvez seja o Erik!...” como outros diziam
ao meu redor: “E o fantasma!...” Quantas vezes não ouvi pronunciar diante de
mim essa frase por pessoas que sorriam! Infelizes! Se soubessem que esse
fantasma existia em carne e osso e era mais terrível do que a sombra vã que
evocavam, juro que teriam parado de fazer troça!... Se apenas tivessem sabido do
que Erik era capaz, principalmente num campo de manobra como a Ópera!... E
se tivessem conhecido o âmago do meu temível pensamento!...
Embora Erik me houvesse anunciado com grande solenidade que tinha
mudado e se tornara o mais virtuoso dos homens, desde que estava sendo amado pelo
que ele era, frase que me deixou de imediato extremamente perplexo, não podia
deixar de fremir ao pensar no monstro. Sua horrível, única e repulsiva feiúra o
punha à margem da humanidade, e pareceu-me, com freqüência, que ele não
julgava, por esse fato mesmo, ter nenhum dever para com a raça humana. A
maneira como falou de seus amores só fez aumentar os meus temores, poisprevia nesse acontecimento, a que aludia num tom gabola que eu já conhecia
nele, a causa de novos dramas mais terríveis do que todo o resto. Eu sabia até
que grau de sublime e desastroso desespero podia ir a dor de Erik, e as palavras
que me dissera — vagamente prenunciadoras da mais terrível catástrofe — não
cessavam de habitar o meu pensamento.
Por outro lado, tinha descoberto o estranho comércio moral que se tinha
estabelecido entre o monstro e Christine Daaé. Escondido no quarto de despejo
contíguo ao camarim da jovem diva, eu tinha assistido a admiráveis sessões de
música, que evidentemente mergulhava Christine num maravilhoso êxtase, mas,
mesmo assim, não teria pensado que a voz de Erik — que era retumbante como
o trovão e suave como a dos anjos, à sua vontade — pudesse fazer esquecer a
sua feiúra. Compreendi tudo quando descobri que Christine ainda não o tinha
visto! Tive a oportunidade de penetrar no camarim e, lembrando-me das lições
que ele me dera havia tempos, não tive dificuldade para encontrar o truque que
fazia girar a parede que suportava o espelho, e verifiquei por que inserção de
tijolos ocos fazia com que Christine o ouvisse como se estivesse ao lado dela.
Assim descobri também o caminho que conduz à fonte e à masmorra — à
masmorra dos communards, como eram chamados os partidários da Comuna de
Paris — e também o alçapão que devia permitir a Erik introduzir-se diretamente
nos subsolos do palco.
Alguns dias mais tarde, qual não foi a minha estupefação ao descobrir,
por meus próprios olhos e ouvidos, que Erik e Christine Daaé se encontravam, e
ao surpreender o monstro, debruçado sobre a fontezinha que chora, no caminho
dos communards (bem na extremidade, debaixo da terra), refrescando com água a
fronte de Christine Daaé desmaiada. Um cavalo branco, o cavalo do Profeta, que
desaparecera das estrebarias dos subsolos da Ópera, estava ali, tranqüilo, ao lado
deles. Apresentei-me. Foi terrível. Vi faíscas saírem dos olhos de ouro e recebi,antes que pudesse dizer palavra, uma pancada no meio da testa, que me deixou
atordoado. Quando voltei a mim, Erik, Christine e o cavalo branco haviam
desaparecido. Não tive dúvida de que a infeliz tinha sido feita prisioneira na
morada do Lago. Sem hesitar, resolvi voltar para a margem. apesar do perigo
iminente que essa atitude comportava. Durante 24 horas fiquei espreitando,
escondido perto da beira negra, o aparecimento do monstro, pois achava que ele
devia sair, forçado a ir fazer as suas provisões. E a respeito disso devo dizer que,
quando ele saía por Paris ou ousava mostrar-se em público, colocava, no lugar de
seu horrível buraco de nariz, um nariz de pasta de cartão com um bigode, o que
não lhe retirava completamente o aspecto macabro, visto que, quando passava,
diziam atrás dele: “Olhe, lá vai o velho Engana-a-Morte”, mas isso o tornava
mais ou menos suportável de se ver.
Eu estava então vigiando à beira do lago — do lago Averne, como ele
chamara várias vezes, diante de mim, ironizando, o seu lago — e, cansado da
minha longa espera, dizia a mim mesmo: “Ele saiu por outra porta, aquela do
terceiro subsolo”, quando ouvi um leve marulhar no escuro; vi os dois olhos de
ouro brilharem como fanais, e logo a barca aportou. Erik saltou na margem e
veio em minha direção.
— Já faz 24 horas que você está aí; você me aborrece! anuncio-lhe que
tudo isso ainda vai acabar muito mal. E é você que está querendo! pois minha
paciência é prodigiosa com você!... Você pensa estar me seguindo, imenso pateta
— (textual) —, e sou eu que o sigo, e eu sei tudo que você sabe sobre mim.
Poupei você ontem, no meu caminho dos communards; mas digo-lhe, em verdade, não
quero mais ver você lá! Tudo isso é muito imprudente de sua parte! Dou minha
palavra! E me pergunto se você ainda sabe o que falar quer dizer!
Estava tão encolerizado que evitei, no momento, interrompê-lo. Depois
de ter resfolegado como uma foca, explicitou o seu horrível pensamento — quecorrespondia ao meu.
— Sim, é preciso saber de uma vez por todas o que falar quer dizer! Eu
lhe digo que com as suas imprudências, porque você já se deixou prender duas
vezes pela sombra do chapéu de feltro, que não sabia o que você estava fazendo
nos subsolos e conduziu você aos diretores, que o tomaram por um fantasioso
persa amante dos truques de magia e de bastidores de teatro (eu estava lá, sim, no
escritório; você sabe que eu estou em toda parte) — eu lhe digo, pois, que com as
suas imprudências acabarão por perguntar-se o que é que você procura aqui... e
acabarão por saber que você procura Erik... e vão querer, como você, procurar
Erik... e vão descobrir a casa do Lago... Então, azar seu, meu velho! azar seu!... eu
já não respondo por mais nada!
Resfolegou de novo como uma foca, antes de continuar:
— Por mais nada!... Se os segredos de Erik não permanecerem segredos
de Erik, azar para muitos da raça humanai E tudo o que eu tinha a lhe dizer e, a
menos que você seja um imenso pateta — (textual) — isso deveria bastar; a
menos que você saiba o que falar quer dizer!...
Ele estava sentado na parte de trás da barca e batia com os calcanhares na
madeira da embarcação, à espera do que eu tinha para lhe responder; eu lhe disse
simplesmente:
— Não é Erik que eu vim buscar aqui!...
— Então é quem?
— Você sabe muito bem: é Christine Daaé! Replicou-me:
— Tenho o direito de marcar encontro com ela na minha casa. Sou
amado por aquilo que sou.
— Não é verdade, você a raptou e a mantém prisioneira!
— Escute, você me promete não se intrometer mais na minha vida se eu
lhe provar que sou amado por aquilo que eu sou?— Sim, prometo — respondi sem hesitar —, pois pensava que para
aquele monstro essa prova era impossível de obter.
— Pois bem, veja! E absolutamente simples!... Christine Daaé sairá daqui
quando achar melhor... e voltará de livre e espontânea vontade, porque ela me
ama pelo que eu sou!...
— Oh! duvido de que ela volte!... Mas você tem o dever de deixá-la ir-se
embora.
— Meu dever, imenso pateta! (textual), é a minha vontade... minha
vontade de deixá-la ir-se, e ela voltará... porque ela me ama!... Tudo isso, eu lhe
digo, vai acabar em casamento... um casamento na igreja da Madeleine, imenso
pateta! (textual). Você acredita em mim, afinal? Quando lhe digo que a minha
missa de casamento já está escrita... você verá esse Kyrie...
Tamborilou ainda com os calcanhares na madeira da barca, numa espécie
de ritmo que ele acompanhava a meia voz cantando: “Kyrie!... Kyrie!... Kyrie
eleison!... Você verá, você verá essa missa!”
— Escute, acreditarei em você se eu vir Christine Daaé sair da casa do
Lago e voltar para ela livremente!
— E você não se meterá mais na minha vida? Pois bem, verá isso esta
noite... Vá ao baile de máscaras. Christine e eu iremos dar uma voltinha por lá...
Você irá depois se esconder no quarto de despejo e verá que Christine, que terá
voltado ao seu camarim, não vai querer outra coisa que não seja tomar o caminho
dos comrnunards.
— Entendido!
Se de fato eu visse isso, só me restaria inclinar-me, porque uma pessoa
belíssima sempre teve de amar o mais horrível monstro, principalmente quando,
como este, ele tem a sedução da música e quando essa pessoa é justamente uma
distintíssima cantora.— E agora vá-se embora porque eu preciso ir para fazer o meu trato!...
Fui-me embora pois, realmente, sempre preocupado com Christine Daaé,
mas sobretudo tendo, no fundo de mim mesmo, um pensamento temível, desde
que ele o tinha despertado tão formidavelmente, a propósito das minhas
imprudências.
Dizia comigo: “Como vai acabar tudo isto?” E, embora fosse bastante
fatalista por temperamento, não podia desfazer-me de uma indefinível angústia
por causa da incrível responsabilidade que tinha assumido um dia, deixando viver
o monstro que ameaçava hoje muitos da raça humana.
Para meu prodigioso espanto, as coisas se passaram como ele me havia
anunciado. Christine Daaé saiu da casa do Lago e para lá voltou várias vezes sem
que aparentemente fosse forçada a isso. Minha mente quis então se desligar
daquele amoroso mistério, mas era muito difícil, sobretudo para mim — por
causa do temível pensamento —, não pensar em Erik. Todavia, resignado a uma
extrema prudência, não cometi o erro de voltar à beira do lago nem de retomar o
caminho dos communards. Mas, perseguido pela idéia fixa da porta secreta do
terceiro subsolo, fui mais de uma vez diretamente a esse lugar que eu sabia
deserto na maior parte do dia. Ficava ali parado, interminavelmente, rolando os
polegares, escondido atrás de um cenário do Rei de Labore, que haviam deixado
ali, não sei por quê, pois não era freqüente representarem o Rei de Labore. Tanta
paciência tinha de ser recompensada. Um dia, vi o monstro, de joelhos, vir em
minha direção. Eu estava seguro de que ele não podia me ver. Passou entre o
cenário que se achava ali e um suporte, foi até a muralha e acionou, num lugar
que pude precisar de longe, uma mola que fez bascular uma pedra, abrindo-lhe
uma passagem. Desapareceu por essa passagem e a pedra voltou a fechar-se atrás
dele. Eu estava de posse do segredo do monstro, segredo que podia, na hora que
me conviesse, entregar-me a morada do Lago.Para estar seguro, esperei pelo menos meia hora e fiz, por minha vez,
funcionar a mola. Tudo aconteceu como para Erik. Mas evitei penetrar no
buraco, sabendo que Erik estava em casa. Por outro lado, a idéia de que eu podia
ser surpreendido ali por ele trouxe-me de repente à memória a morte de Joseph
Buquet e, não querendo comprometer tal descoberta, que podia ser útil a muita
gente, a muitos da raça humana, deixei os subsolos do teatro, depois de ter
cuidadosamente reposto a pedra no lugar, segundo um sistema que não tinha
variado desde a Pérsia.
Imagine que eu continuava muito interessado pela intriga entre Erik e
Christine Daaé, não porque obedecesse no caso a uma curiosidade doentia, mas
sim, como já disse, por causa daquele pensamento temível que não saía da minha
cabeça: “Se Erik”, pensava eu, “descobrir que não é amado pelo que é, tudo pode
acontecer”. E, não parando de vaguear — prudentemente — pela Ópera, fiquei
logo sabendo da verdade sobre os tristes amores do monstro. Ele ocupava o
espírito de Christine pelo terror, mas o coração da doce menina pertencia
inteirinho ao visconde Raoul de Chagny. Enquanto estes dois brincavam, como
dois noivos inocentes, nos altos da Ópera — fugindo do monstro —, não tinham
dúvida de que alguém os estava vigiando. Eu estava decidido a tudo: a matar o
monstro, se preciso fosse, e a dar em seguida explicações à Justiça. Mas Erik não
se mostrou — e nem por isso eu estava mais seguro.
Eu preciso dizer todo o meu cálculo. Eu achava que o monstro, expulso
de sua morada pelo ciúme, me permitiria assim penetrar sem perigo na casa do
Lago, pela passagem do terceiro subsolo. Eu tinha todo interesse, por todos, em
saber exatamente o que podia haver lá dentro! Um dia, cansado de esperar uma
oportunidade, fiz a pedra girar e imediatamente ouvi uma música formidável; o
monstro estava trabalhando, com todas as portas abertas, na composição do seu
Don Juan triunfante. Eu sabia que aquela era a obra de sua vida. Tomei cuidadopara não me mexer e fiquei prudentemente no meu buraco escuro. Em dado
momento, parou de tocar e pôs-se a andar pela casa, como um louco. E disse
bem alto, com voz retumbante: “É preciso que tudo isso esteja terminado antes!
Bem terminado!” Essa palavra não teve o dom de me tranqüilizar e, como a
música recomeçasse, fechei a pedra devagarinho. Ora, apesar de a pedra estar
fechada, eu ainda ouvia um vago canto distante, distante, que subia do fundo da
terra, como tinha ouvido o canto da Sereia subir do fundo das águas. E lembrei-
me das palavras de alguns maquinistas, que tinham provocado sorrisos incrédulos
quando da morte de Joseph Buquet: “Havia em torno do corpo do enforcado um
ruído que parecia o canto dos mortos”.
No dia do rapto de Christine Daaé só cheguei ao teatro bastante tarde da
noite e tremendo por tomar conhecimento das más notícias. Tinha passado um
dia atroz, pois não parara, desde a leitura de um jornal matutino que anunciava o
casamento de Christine com o visconde de Chagny, de me perguntar se, depois
de tudo, eu não faria melhor em denunciar o monstro. Mas a razão me voltou e fiquei
persuadido de que tal atitude só podia precipitar a catástrofe possível.
Quando o meu carro me deixou diante da Ópera, olhei para o
monumento como se estivesse admirado por ainda vê-lo de pé!
Mas sou, como todo bom oriental, um pouco fatalista e entrei, pronto para
tudo!
O rapto de Christine Daaé no ato da prisão, que naturalmente
surpreendeu a todos, encontrou-me preparado. Eu estava certo de que Erik o
tinha transformado, como rei dos prestidigitadores que era, em verdade. E pensei
mesmo que desta vez era o fim para Christine e talvez para todo mundo.
Tanto assim que em dado momento me perguntei se não devia
aconselhar, a todas essas pessoas que se tardam no teatro, que saíssem rápido.
Mas desisti de prosseguir nesse pensamento de denúncia pela certeza de que metomariam por um louco. Afinal, não ignorava que, se por exemplo eu gritasse
para que todas aquelas pessoas saíssem: “Fogo!”, eu poderia ser a causa de uma
catástrofe, sufocamentos na fuga, pisoteamentos, lutas selvagens — pior do que a
própria catástrofe. Entretanto, resolvi agir sem mais tardança, pessoalmente. O
momento me parecia, aliás, propício. Eu tinha bastantes chances de que, nessa
hora, Erik não pensasse senão na sua cativa. Era preciso aproveitar para entrar
em sua morada pelo terceiro subsolo, e pensei em juntar a mim, para essa
iniciativa, aquele pobrezinho do visconde desesperado, que, à primeira palavra,
aceitou com uma confiança em mim que me sensibilizou profundamente; tinha
mandado um doméstico buscar as minhas pistolas. Darius veio encontrar-nos
com a caixa no camarim de Christine. Dei uma pistola ao visconde e lhe
aconselhei estar pronto para atirar, como eu, pois, afinal de contas, Erik podia
estar à nossa espera atrás da parede. Devíamos passar pelo caminho dos
communards e pelo alçapão.
O viscondezinho me perguntara, ao ver as minhas pistolas, se íamos nos
bater em duelo. Certamente! e lhe disse: “Que duelo!” Mas não tive tempo, bem
entendido, de lhe explicar nada. O jovem visconde é corajoso, mas ignorava
quase tudo de seu adversário! E assim era melhor!
Que é um duelo com o mais terrível dos espadachins perto do combate
com o mais genial dos prestidigitadores? Eu mesmo dificilmente aceitava essa
idéia de que ia entrar em luta com um homem que só é visível quando quer e que,
em contrapartida, vê tudo ao seu redor, quando tudo para você permanece
escuro!... Com um homem cuja ciência bizarra, sutileza, imaginação e destreza lhe
permitem dispor de todas as forças naturais, combinadas para criar aos nossos
olhos ou aos nossos ouvidos a ilusão que é a nossa perda!... E isso, nos
subterrâneos da Ópera, quer dizer, no próprio território da fantasmagoria! Pode-
se imaginar isso sem tremer? Pode-se ao menos ter uma idéia do que poderiaacontecer aos olhos e aos ouvidos de um habitante da Ópera, se se fechasse
dentro da Ópera — nos seus cinco subsolos e nos seus 25 pavimentos superiores
— um Robert Houdin feroz e “gozador”, que ora zomba, ora odeia!, que ora
esvazia os bolsos, ora mata!... Pensem nisto: “Combater o amador de alçapões?”
— Deus meu! Terá ele fabricado em nossa casa, em todos os nossos palácios,
desses espantosos alçapões pivotantes que são os melhores alçapões! —
Combater o amador de alçapões no domínio dos alçapões!...
Se a minha esperança era que ele não havia deixado Christine Daaé
naquela morada do Lago aonde devia tê-la transportado, mais uma vez,
desmaiada, meu terror era que ele já estivesse em algum lugar perto de nós,
preparando o laço do Pendjab.
Ninguém melhor do que ele sabe lançar o laço do Pendjab, e ele é o
príncipe dos estranguladores, como é o rei dos prestidigitadores. Quando
terminou de fazer rir a pequena sultana, no tempo das horas cor-de-rosa de
Mazenderã, ela própria lhe pedia que se divertisse fazendo-a estremecer. E ele não
achou nada melhor do que o jogo do laço do Pendjab. Erik, que tinha estagiado
na índia, voltara de lá com uma destreza incrível para estrangular. Fazia com que
o fechassem num pátio aonde traziam um guerreiro — no mais das vezes
condenado à morte — armado com uma longa lança e com uma larga espada.
Quanto a Erik, só tinha o seu laço, e era sempre no momento em que o guerreiro
acreditava estar abatendo Erik com um golpe formidável que se ouvia o laço
assobiar. Com um lance de punho, Erik já tinha apertado o fino laço no pescoço
do inimigo e arrastava-o imediatamente diante da pequena sultana e de suas
mulheres que olhavam de uma janela e aplaudiam. A pequena sultana aprendeu
também a lançar o laço do Pendjab e matou assim várias de suas mulheres e até
algumas de suas amigas em visita. Mas prefiro abandonar esse assunto da horas
cor-de-rosa de Mazenderã. Se falei disso é porque, ao chegar com o visconde deChagny nos subsolos da Ópera, tive de colocar o meu companheiro de
sobreaviso contra uma possibilidade sempre ameaçadora ao redor de nós, de
estrangulamento. Certamente, uma vez nos subsolos, as minhas pistolas não
podiam mais servir para nada, pois eu estava certo de que, uma vez que não se
tinha oposto de início à nossa entrada no caminho dos communards, Erik não mais
se deixaria ver. Mas sempre podia estrangular-nos. Não tive tempo de explicar
tudo isso ao visconde e até nem sei se, caso dispusesse desse tempo, ousaria
contar-lhe que havia, em algum lugar na escuridão, um laço do Pendjab pronto
para assobiar. Era mesmo inútil complicar a situação e limitei-me a aconselhar ao
Sr. De Chagny que mantivesse sempre a mão à altura do olho, com o braço
dobrado na posição do atirador de pistola que aguarda o comando de fogo.
Nessa posição, é impossível, mesmo ao mais adestrado estrangulador, lançar
eficazmente o laço do Pendjab. Ao mesmo tempo que no pescoço, ele pega no
braço ou na mão, e assim esse laço, que se pode facilmente desfazer, torna-se
inofensivo.
Depois de termos evitado o delegado de polícia e alguns fechadores de
portas, depois os bombeiros, e de encontrado pela primeira vez o matador de
ratos e passado despercebidos aos olhos do homem do chapéu de feltro, o
visconde e eu chegamos sem tropeços ao terceiro subsolo, entre o suporte e o
cenário do Rei de Labore. Fiz bascular a pedra e saltamos na morada que Erik
construíra para si dentro do duplo invólucro dos muros de fundação da Ópera (e
isso o mais tranqüilamente possível, pois que Erik foi um dos primeiros empreiteiros de
alvenaria de Philippe Garnier, o arquiteto da Ópera, e continuara a trabalhar,
misteriosamente, sozinho, depois que as obras estavam oficialmente suspensas, durante a guerra,
o cerco de Paris e a Comuna).
Eu conhecia bastante o meu Erik para acalentar a presunção de chegar a
descobrir todos os truques que tinha podido arquitetar durante todo esse tempo:assim, não estava nada confiante ao saltar para dentro da sua casa. Sabia o que ele
tinha feito de certo palácio de Mazenderã. Da mais inocente construção do
mundo ele fez em pouco tempo a casa do diabo, onde não se podia mais
pronunciar uma palavra sem que ela fosse envenenada ou espalhada pelo eco.
Quantos dramas de família! Quantas tragédias sangrentas o monstro arrastava
atrás de si com os seus alçapões! Sem contar que nunca se podia, nos palácios
onde implantara os seus truques, saber exatamente onde a gente se encontrava.
Ele tinha invenções espantosas. Certamente, a mais curiosa, a mais horrível e a
mais perigosa de todas era o quarto dos suplícios. Afora os casos excepcionais em
que a pequena sultana se divertia fazendo sofrer o burguês, só se deixava entrar
ali os condenados à morte. Era, a meu ver, a mais atroz fantasia das horas cor-de-
rosa de Mazenderã. Além do mais, quando o visitante que tinha entrado no quarto
dos suplícios “já estava farto”, sempre lhe era permitido ir acabar no laço de
Pendjab que se deixava à sua disposição ao pé da árvore de ferro!
Ora, qual não foi a minha emoção, logo depois de ter penetrado na
morada do monstro, ao perceber que o cômodo em que acabáramos de saltar, o
visconde de Chagny e eu, era justamente a reconstituição exata do quarto dos
suplícios das horas cor-de-rosa de Mazenderã.
A nossos pés, encontrei o laço do Pendjab que tanto temera toda a noite.
Estava convencido de que esse fio já tinha servido para Joseph Buquet. O chefe
dos maquinistas, como eu, deve ter surpreendido, certa noite, Erik no momento
em que acionava a pedra do terceiro subsolo. Curioso, tinha, por sua vez, tentado
a passagem antes que a pedra voltasse a se fechar e tinha caído no quarto dos
suplícios, e de lá só tinha saído morto. Imaginei muito bem Erik arrastando o
corpo de que desejava se livrar até o cenário do Rei de Lahore e dependurando-o
ali para servir de exemplo e para engrossar o terror supersticioso que devia ajudá-lo a
guardar os acessos de sua caverna!Mas, depois de uma reflexão, Erik voltara para buscar o laço de Pendjab,
que é muito singularmente feito de tripas de gato e teria podido excitar a
curiosidade de um juiz de instrução. Assim se explicava o desaparecimento da
corda de enforcado.
E eis que eu o descobria a nossos pés, o laço, no quarto dos suplícios!...
Não sou pusilânime, mas um suor frio me inundou o rosto.
A lanterna cujo pequeno disco eu fazia deslizar pelas paredes do
famigerado quarto tremia em minha mão.
O Sr. De Chagny percebeu e me disse:
— O que é que está acontecendo?
Fiz-lhe, violentamente, sinal para se calar, pois eu ainda podia ter esta
suprema esperança de que estávamos no quarto dos suplícios sem que o monstro
soubesse de nada!
E mesmo essa esperança não era a salvação, pois eu podia muito bem
imaginar que, do lado do terceiro subsolo, o quarto dos suplícios tinha a função
de guardar a morada do Lago, e isso, talvez, automaticamente.
Sim, os suplícios iriam talvez começar automaticamente.
Quem poderia dizer que gestos nossos eles esperavam para isso?
Recomendei a imobilidade mais absoluta ao companheiro.
Um silêncio esmagador pesava sobre nós.
E a minha lanterna vermelha continuava a dar a volta pelo quarto dos
suplícios... eu o conhecia... eu o conhecia...

O Fantasma Da Ópera - Gaston LerouxWhere stories live. Discover now