A luz roubada de Tracunhaém

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Macuxi sabia que Teju Jagua era poderoso, mas não imaginava que ele poderia, um dia, fugir para bem longe carregando toda a luz que esquentava e alimentava as terras de Tracunhaém.

Teju Jagua, a grande serpente bondosa que Macuxi conheceu ainda criança, num rompante inexplicável, talvez por inveja ou ciúmes, traía seu próprio povo fugindo para um lugar desconhecido e deixando de herança um mundo gelado e sombrio. As colheitas e a prosperidade das tribos, nutridas e protegidas no passado pela bondade e pelos poderes de Teju Jagua, sucumbiam à decadência e à morte nas noites de frio sem fim.

E foi o transtorno dessas noites e a traição do antigo amigo que há muito fizeram Macuxi perder a noção do tempo que passou errando pelas matas serradas e as depressões e vales das montanhas e das terras que se perdiam sob a manta negra e imaculada que se transformou o céu com o roubo de Teju Jagua. Macuxi percorreu e abriu muitas trilhas numa escuridão quase absoluta não fosse o fraco brilho de algumas estrelas e os urros lampejantes de Tupã

Em vão.

Teju Jagua não foi encontrado e Macuxi não pôde encarar os olhos desonrosos do traidor e tomar de suas mãos escamosas a luz que arrancou das aldeias de Tracunhaém, ainda que o índio soubesse que a única certeza num confronto com a besta de poderes mágicos seria o encontro com sua própria morte.

Macuxi descansava num chão de seixos arredondados. Uma nostalgia amarga e rancorosa lhe trazia à mente as tardes que praticava, ainda jovem, os lançamentos de pedras com seu bodoque de pau de goiabeira com o também jovem amigo Teju Jagua. A destreza que sobrava a Macuxi no arremesso da flecha pelo arco e o cipó, faltava-lhe com o bodoque. As pedras que quase nunca acertavam o alvo eram a razão das longas e estrondosas gargalhadas de Teju Jagua, perito no lançamento com o bodoque até mesmo dos mais deformados cascalhos.

O índio se sentia culpado por saber que ainda nutria saudades daqueles bons tempos com Teju Jagua, quando tudo era mais simples em Tracunhaém e as noites tinham hora para sair. E voltar. E sair novamente. A dor da culpa em seu peito o fez, ainda que não fizesse muita diferença, fechar seus olhos. Macuxi encostou a cabeça num seixo mais liso e tentou adormecer.

Ele não sabia por quanto tempo adormeceu. Isso já não importava. Muita coisa já não importava. Despertou quando sentiu na face uma rajada de vento violenta e viu, ainda meio sonolento, um grande falcão de plumas negras batendo suas asas majestosas se transformar num forte índio.

Era Xandoré, que nas mãos trazia uma flecha.

─ Veio zombar da nossa desgraça, novamente? ─ ainda que a escuridão o permitisse, Macuxi não olharia nos olhos de Xandoré.

─ Sei onde está Teju Jagua. ─ disse Xandoré, sucinto.

Macuxi ficou em silêncio, agora mirando o falcão negro que se transformou em homem.

─ E você pode acabar com tudo isso, em breve. Nenhum outro em Tracunhaém domina o arco e a flecha como você.

Xandoré entregou a Macuxi a arma que tinha em mãos.

E continuou:

─ A garra do gavião-rei na ponta da flecha pode penetrar a couraça de Teju Jagua. Ela está banhada com o curare feito do catarro do curumu e infuso com as lágrimas sagradas de Tupã que cortam as terras de Kamukuwaká.

O índio ouvia Xandoré enquanto apreciava, atento, a flecha talhada no bambu.

─ Para matá-lo ─ prosseguia Xandoré ─ mire no peito, no lado do coração. É a única forma dos dias voltarem a ser o que eram. Anhangá o guiará pela floresta com seus olhos de fogo até onde Teju Jagua esconde e goza os prazeres do seu roubo. Com esse cocar, ─ Xandoré retira da cabeça um cocar ornado de plumas negras e entrega o artefato a Macuxi ─ poderá passar despercebido pelos homens e mulheres que Teju Jagua mantém sob seu encanto para protegê-lo em seu refúgio.

A luz roubada de TracunhaémWhere stories live. Discover now