O Senhor dos Fios Desfiados

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para Heloyse Tamacias

- Escute - disse-lhe o velho alfaiate. Ele aguardou e, após um minuto, orientou: - Veja.

Eu, que também já fui um dos aprendizes do velho Vladimir, não saberia me conter não fosse um dos seus ensinamentos. O mesmo ensinamento agora era transmitido ao mais jovem aprendiz de costureiro.

- O que me diz? - quis saber o velho Vladimir.

O aprendiz parecia disperso. Seu olhar, meio vago e muito vazio, buscava tesouros esquecidos. Confesso que não consegui identificar o poema confuso que seus olhos pareciam declamar. Olhar insatisfeito que inauguraria as plurais descrições de momento, pois havia mais que o incomparável em seus olhos. Havia o temor ao erro e o respeito à dúvida. Havia a procura pelo oculto e a descoberta de um lado insubstituível.

Havia, acima de tudo, a observadora divagação e a reticente pergunta: Escute... Veja... O que me diz?...

- Eu ouço a constante marcha das máquinas de costura, senhor - respondeu-lhe o aprendiz. Aos poucos o seu olhar se refazia em brilho e em significado, e era como se a certeza remendasse os buracos deixados pela insatisfação. - E é como se fosse um exército. Um exército que marcha pela paz das lojas e pelo bem estar dos consumidores. Um exército que trabalha em conjunto, sua marcha diminuta, e a continência batida a cada ponto finalizado. O senhor é o comandante, Seu Vladimir, e todas as peças de roupa protagonizam as boas ações deste batalhão.

Expirei, transbordando surpresa e fascínio. Por um instante imaginei que o brilho no olhar do velho alfaiate se transformaria em lágrimas de emoção. Implícita sob a postura profissional de Seu Vladimir estava o orgulho e a sensação de dever quase cumprido. Quase.

O aprendiz dera vida aos sons da alfaiataria, de fato, mas todas essas percepções auditivas não respondiam por completo à pergunta do chefe.

- Muito bem! - o velho pigarreou a satisfação. - Agora me diga o que vê.

Era nítida a sua ansiedade. Compartilhávamos da mesma sensação.

- Eu vejo máquinas costurando sentimentos para vestir antíteses.

Fiquei boquiaberto. Até os pelos da nuca se levantaram para ouvir. Seu Vladimir pareceu intrigado, como se ouvisse um idioma desconhecido, como se se encontrasse desconcertado pela primeira vez, como se a sua compreensão fosse adunca de primeira viagem.

O velho olhou ao seu redor e pôs-se a admirar o patrimônio que construíra. Como eram bem localizadas algumas das mesas de costura, próximas às janelas, desfrutando de luz natural e ventilação. Outras, menos privilegiadas, encontravam-se no meio da sala, bisbilhotando a visão externa e a brisa alheias. Lembrou-se do início de sua trajetória, quando ainda era aprendiz de um tecelão de primeira qualidade, a primeira peça urdida com primor, a primeira condecoração recebida, a primeira encomenda satisfatória, o primeiro aprendiz (que era eu)...; e agora, o homem acostumado a uma vida inteira dedicada a construções e reformas, meditava, introspectivo, sobre a sua primeira desconstrução.

O aprendiz desconstruiu a muralha do seu passado, e desconcertou o costume de seu líder.

A astúcia do velho se manteve.

- O que tem nas mãos? - quis saber.

- Linha, senhor. Que mais poderia ser?

- No que está trabalhando?

- Peças íntimas. Cuecas, para ser específico.

Seu Vladimir pareceu estudar o aprendiz, como se percebesse a sabedoria de seu funcionário.

"Andem sempre de cuecas e, quando lhes abaixarem as calças, não verão as suas vergonhas". Não era isso o que diriam os costureiros aos homens?

E o que diriam os homens aos costureiros? "Bem-aventurados os fabricantes de cuecas, porque deles é o produto que nos segura o rabo longe das pernas". Certo?

Meter o rabo entre as pernas... Foi o que eu fiz quando não percebi o que tinha para ser percebido, e isso me custou.

Pelo visto o aprendiz vestia boas cuecas.

- E por que interrompeu o trabalho?

- As linhas estão velhas, senhor - respondeu, com sinceridade. - Todas elas. Encontro uma boa ponta, um bom metro e uma boa aparência, coloco na agulha e a linha simplesmente desfia, senhor - coçou a cabeça, sem preocupação. - Isso lhe custou uns bons dez rolos de linha escarlate. Este - indicou-lhe o rolo que tinha nas mãos - é o terceiro rolo de linha verde.

- E o que me diz sobre esses rolos defeituosos?

- Obra sua, senhor!

- O que está dizendo?

- Atrás daquela porta estreita - apontou para a sala do patrão - está escondido um magnífico tear. Há peças e peças. Umas precisam de uma construção laboriosa, entrelaçamentos de ideias e produção de obras de beleza; outras precisam ser atravessadas, sua força fincada no tecido para estabelecer a união de duas partes, ideias pré-estabelecidas e a produção de obras de embelezamento.

"Atrás daquela porta larga - apontou para a porta de entrada do estabelecimento - está escondido um quartel cujos soldados são marionetes maquinares em nossas mãos. Atendemos ao povo, preocupados com a sua segurança, e ele nos retribui a satisfação. O senhor toma essa satisfação para si, soma-a a outras passadas, e partilha dela conosco, abrindo espaço para as satisfações do porvir.

"As insatisfações o senhor toma para si e as leva para detrás da porta estreita. Lá ela é transformada em tapetes belíssimos: uns para serem expostos, admirados, como se fossem troféus de uma conquista de toda uma vida; outros para serem pisados e sujos, a fim de proporcionar conforto e manter limpa a sola alheia. Mas o fato em comum é que, em ambos os casos, as insatisfações não deixam de serem entrelaçadas e transformadas em belíssimos tapetes; há propósito neles.

"Um tecelão em sua maestria, como o senhor - apontou com o rolo para o velho Vladimir -, jamais permitiria rolos e mais rolos de linha defeituosos. A maestria é cúmplice da perfeição, e cabe a elas o tear da união. É como a paz para os povos.

- Eu realmente deixei os rolos de linha de propósito - confessou o velho. - Mas qual seria o motivo para tal?

- Urdir não é malfazer. Usamos cuecas com fios danificados, entretanto não produzimos cuecas com fios ruins. Usamos fios bons e firmes para que, mesmo quando envelhecerem, permaneçam peças boas e firmes. Fios ruins nós puxamos até pocar e depois jogamos fora. Mas as vergonhas continuam tampadas, protegidas - o aprendiz respirou. Deu dois passos até a sua mesa e bebeu um pouco de água. - É simples: foi só um teste de qualidade, e acredito que fui aprovado.

- Mas você não encontrou fios bons.

- E também não produzi peças ruins.

Novamente Seu Vladimir encontrou-se desconcertado. A labuta da vida tinha lhe acrescentado muitos ensinamentos em forma de experiência e cabia a ele ser um bom mestre das linhas. Eu jamais duvidaria de que ele era merecedor do título, contudo, para ser legitimado dominador das linhas, era necessário compreender também as entrelinhas. Antes de aprender os primeiros pontos, Seu Vladimir aprendeu a limpar a própria sujeira e a estabelecer a paz interior.

Era preciso, antes de provar os movimentos das marionetes do exército, limpar o quartel e instruir aos soldados para que agissem de forma ética. O velho alfaiate liderava sua tropa maquinar numa batalha em favor da paz. Muitos fios soltos precisavam ser pocados e as casas vagas precisariam ser reabitadas com fios viris e competentes. As peças da alfaiataria constituíam o mundo em sua plenitude. Por vezes os fios eram desfiados para que os soldados formassem bases com fios mais fortes.

O aprendiz tinha captado a mensagem e aprendido a lição. Haveria indulgência caso ele errasse, assim como eu tive. Um erro não deve ser corrigido. Um erro deve ser compreendido e valorizado.

- Tendo aprendido essa lição - o aprendiz disse como um mestre das linhas -, devo dizer que o dever foi cumprido.

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⏰ Last updated: Aug 29, 2016 ⏰

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