CAPÍTULO 9: PROVAS

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      Lembro daquela luz branca e fraca sobre minha cabeça, que falhava constantemente em sincronia invejável, rodeada por um chapéu de plástico cinza em forma de cone. Era como uma decoração de Natal, só que triste. Mórbida. Vazia. Um verdadeiro necrotério. Se bem que a sala de depoimentos onde os dois oficiais da polícia fizeram questão de me transformar no grande vilão da história não era muito diferente de um lugar frio e cheio de cadáveres dissecados em gavetas. Eles estavam sedentos por respostas. E eram sempre as mesmas que eu já havia lhes dado: "Sim, eu matei o maldito do Eric."

      Foram cinco dias enclausurado até que a polícia se desse conta da minha inocência; de que só matei para não morrer. Antes mesmo de ser interrogado, todos naquela delegacia já haviam me sentenciado como um assassino frio. Aquilo destruiu para sempre a imagem de ética e respeito que, em particular, a Polícia de Lelton me passava. Sem que palavra alguma saísse da minha boca, sem que nenhum defensor público surgisse para ser o meu escudo, sem qualquer empatia daquelas pessoas, os olhares de desprezo e julgamento me feriram, como se eu fosse só mais um delinquente viciado em cocaína que matou por causa da droga. Quando finalmente me deram a chance de explicar, ainda que sob intimidações e gritos repetindo as mesmas perguntas, contei sobre a foto, as câmeras de segurança dos Agnes, que poderiam ter flagrado a invasão de Eric, e da gravação em vídeo que fiz no depósito pouco antes de entrar e ligar a lanterna. Um impulso, mas útil no fim das contas. Eles confiscaram meu celular de tela rachada e o canivete ensanguentado para a perícia e emitiram uma ordem para que Thomas cedesse as imagens de seu sistema de vigilância. Só então, com todas as evidências juntas, recebi algum crédito. Enfim aqueles homens entenderam que eu jamais mataria por vontade própria.

      Era ele ou eu.

      Foi então que, pela primeira vez, percebi, na prática, que eu queria viver. Nunca reagi a nenhuma das violências de Eric e seu grupo porque estava conformado com a morte. Eu tentei me matar. Mas entendi, enfim, que matar a minha dor mataria também o meu desejo quase perdido de viver. De ser livre. Sheila, a psicóloga, mesmo sem ter tido tempo de se aprofundar em mim, acendeu uma esperança em meu coração na nossa primeira e última conversa. Eu tinha uma chance de vencer tudo aquilo. Ela me mostrou uma força escondida embaixo das camadas de ansiedade e medo que preenchiam o meu corpo. Assim como Lia, eu não já não entendia mais o porquê do meu conformismo, da aceitação que, durante tanto tempo, eu me acostumei a ter sobre os meus problemas. O medo das consequências me fez errar feio, ainda que houvessem escolhas melhores.

      Mas isso jamais aconteceria de novo.

      Questionei a mim mesmo durante os dias em que estava preso o motivo de eu não me sentir culpado ou carregar sequelas depois de ter acabado com aquele filho da mãe, ainda que não tivesse a intenção. A resposta veio sem timidez: "Que se foda o Eric.". Só de lembrar tudo o que passei nas mãos dele durante anos de assédios, eu definitivamente não tinha tempo a perder remoendo sentimentos por alguém que, sinceramente, procurou e mereceu o fim que teve. A verdade é que, àquela altura, meu coração era incapaz de experimentar qualquer tipo de sentimento. As emoções da carne simplesmente fugiram de mim, me deixando em um imenso vazio junto a minha matéria, como se minha existência perdesse o sentido de repente.

      Zero novidades.

      De qualquer maneira, nada daquilo era relevante no momento. O único problema que enchia minha mente com paranóias, que mais se pareciam possibilidades, era somente um: a maldita foto.

      Enquanto me sufocava e berrava não precisar de armas para lutar contra um covarde como eu, Eric teve tempo de divulgá-la antes que meu canivete rasgasse o seu pescoço e livrasse pelo menos umas trinta pessoas de sofrer bullying da mesma pessoa novamente.

      Acho que fui um herói.

      Eu sabia pouco sobre ele, a maior parte a polícia me disse. Eric era sozinho no mundo. Seus pais faleceram em um acidente aéreo, enquanto ele, de algum jeito, saiu ileso da queda. Não tinha irmãos ou parentes que o conhecessem intimamente. Sem ninguém, Eric morava numa casa, no interior de Lelton, alugada graças a uma gorda indenização da companhia aérea depois da tragédia. Nada em sua vida saía como o planejado, a não ser quando queria machucar pessoas. Um policial revelou durante um dos interrogatórios que Eric tinha sérios problemas psicológicos, adquiridos após o trauma, e que agia daquela forma para se armar contra as situações da vida. Às vezes violento, às vezes dramático, ou melancólico, ou romântico, ou caricato, ou tudo isso em um só dia.

       Apesar de toda a tragédia, Eric estava errado em acreditar que era o único sofredor. Viver momentos difíceis jamais seria prioridade de um só. Talvez aquela pessoa que estava sorrindo na frente de todos, na verdade, estivesse caminhando sobre uma passarela de cacos de vidro enquanto o sangue desenha o formato de seus pés por onde passam. Ninguém, ninguém sabe o que acontece no íntimo do outro.

      A história de Eric era, sim, triste, mas o seu grande equívoco foi usar isso como prova de defesa; foi achar que, por causa disso, seria absolvido do mal que causava. O sentimento doentio que ele dizia sentir por Chloe era a prova maior da sua desonestidade. Ele se aproveitara da frustração daquele amor não correspondido — se é que Loe tinha alguma noção disso — para dar razão ao seu ódio por mim. Em outras palavras, criar um motivo tosco só para me espancar.

      Eu não tinha muitas amizades. Além de Chloe, nenhuma, na verdade. Apenas pessoas conhecidas do colégio ou do meu bairro tinham contato comigo, mas nada íntimo. A impressão que tive foi que todos passaram a ter medo de mim, até mesmo os que só conhecia de vista. A notícia de que havia uma morte em destaque no meu currículo se espalhou como um vírus mortal. Enquanto uns acreditavam que um assassino como eu não deveria sequer pisar no mesmo chão que eles, outros, vítimas de Eric, principalmente, saíram em minha defesa. Eu, entretanto, não me forcei a uma sentença. Olhei para dentro de mim e apenas disse: "Você fez o que deveria".

      Meio maltrapilho e dispensando banho, saí da delegacia e fui diretamente à casa de Chloe. Não havia falado com ela desde o maldito dia da transa. Era noite. Na rua, eu recebia olhares de julgamento de todos os cantos, mas ignorei. E daí que eles me viram sem roupa ou sabem que eu matei alguém? Eu não era a prioridade. Minha mente estava bem mais preocupada imaginando o que Chloe poderia estar sentindo diante de toda aquela exposição.

      Caos era o resumo.

O Peso do PensarWhere stories live. Discover now