O caminho da Divindade

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As chamas tornaram-se altas, dançando como demônios sob a luz da lua cheia, enquanto o próprio ritual de oferenda atingia seu ápice. O círculo menor, onde estavam apenas as com vestes de sacerdotisa, encontrava-se deliberadamente próximo ao fogo que mesmo pungente não lhes oferecia perigo, destinando suas labaredas apenas ao motor home.

Outro círculo ainda maior, dançando freneticamente ao redor do primeiro e das chamas, era composto por mulheres nuas com máscaras. As do primeiro círculo pareciam recitar algo em uníssono, enquanto as dançarinas apenas riam e gritavam enquanto a apoteose se aproximava.

Um corpo masculino jazia do lado de fora próximo à entrada daquela morada em chamas, consumido quase por completo pelo fogo. Além de sua morte, as bruxas esperavam outras duas até a consumação do ritual, havia uma mulher e um recém-nascido naquela casa móvel.

Abigail era o nome de um dos sacrifícios. Seus cabelos avermelhados e longos pareciam chamas próprias enquanto lhe grudavam a pele suada conforme se movimentava ainda lenta. Resquícios do parto normal poucas horas atrás. A criança chorava incessantemente na cama do casal, envolta numa manta que apenas trazia-lhe mais calor. Era frágil demais, pequena demais. Indefesa.

Mas Abigail não era.

Logo o fogo obliteraria os feitiços de proteção e estouraria as janelas, tocando-os como um amante insaciável até lhes tirar completamente a vida. Pouco importava se o sacrifício era para a Deusa, não tirariam seu único filho, um destino de morte não pode ser traçado apenas porque nasceu menino.

Em meio aquele cenário infernal, ainda sim, precisava estar calma. O caminho estava gravado em sua memória, as formas e os símbolos para abrir um portal proibido – segredo de seus antepassados – que lhe permitiria atravessar até mesmo o véu, chegando ao lar das divindades.

Era hábil na prática dos símbolos, tendo em menos de um minuto os desenhado no chão. Sentia a cabeça latejar pungentemente, sinal de que sua barreira estava no limite. O calor era intenso demais para continuarem por mais tempo. Soltou o estranho material preso com tachinhas no estrado da cama, pele humana tatuada e oleada, repleta de símbolos com um desenho em específico.

Ela invocaria Kadah – serva de Cthulhu. Já havia marcado o selo de passagem na parte anterior do antebraço dias atrás, quando soube da intenção de suas companheiras bruxas. Abigail deu a seu filho o nome de Gabriel, pois havia sido enviado por Deus, e sua missão não seria morrer ali.

Recitou a fonética advinda dos símbolos.

Subitamente não estava mais em seu corpo. O ser etéreo navegava em meio a um escuro intimidante e assustador, com apenas uma fina linha guiando entre sua realidade e a que está agora. Percebeu adiante uma sequencia interminável de brilho e refrações de luz que seguiam um estranho padrão.

Com a referência luminosa percebeu sua velocidade, mas antes do terror lhe assomar o peito houve a parada. Em frente a alguma coisa tão grande quanto um buraco negro, mas num formato labial.

Percebeu que aquilo tudo fazia parte dela, estava diante de uma divindade. Do buraco negro palavras chegavam a seus ouvidos.

— O que queres?

— Proteção.

— E como pretendes pagar por ela?

— Com a própria vida. Com a vida de quarenta bruxas.

— Quer me oferecer algo que não lhe pertence?

— Elas mataram meu companheiro. E ameaçam a mim e a meu filho. Conheço as leis antigas. Tenho o direito de vingança.

— E assim será.    

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