Cumprindo o acordo

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A forma da divindade reduziu-se ao tamanho de seu próprio corpo. Uma mulher nua de cabelos escuros com uma venda negra nos olhos. Seu corpo era tatuado com símbolos e imagens de bestas, e de suas costas erguiam-se restos ressecados do que um dia teriam sido asas. Próximas à cintura outras protuberâncias como garras de algum animal à espreita.

Ela voou na direção de Abigail, empurrando-a para o caminho de volta por entre os véus – juntas – até sua realidade. A mulher de cabelos ruivos então, e sem saber o motivo, parou antes de voltar ao seu corpo, flutuando como espectadora. Via os círculos do ritual, mulheres com quem tantas vezes comungou. Pessoas as quais compartilhava confidências e anseios. Todas ali.

Notou, porém, hesitação em algumas. Rostos distorcidos de pavor, dançarinas que simplesmente paralisavam. Percorrendo a mesma direção daqueles olhares, percebeu a forma no telhado de sua morada, a divindade. Ela mantinha-se ao centro de tudo, cercada pelas chamas que simplesmente desviavam de sua presença.

Aquele ser gritou. Aguda e estridentemente. Junto com o som da voz sua pele parecia rasgar-se onde se encontravam tatuadas as bestas. Elas remexiam-se, como vivas, e se lançavam ao mundo como se expulsas, multiplicando de tamanho e desaparecendo na escuridão.

Os gritos começaram logo após. Pele era cortada como manteiga, corpos eram dilacerados e ossos triturados. Aquela mulher havia dado o sinal para um banquete, e suas bestas acordaram para reclamá-lo. As bruxas do círculo maior estavam cercadas.

Seria impossível descrever formas para o grotesco. Haviam partes afiadas, dentes, locais por onde troncos ou membros inteiros eram engolidos ou arrancados. O círculo interno – diferente do primeiro, já em pânico – continuava a orar e as chamas respondiam se intensificando.

A divindade desapareceu do telhado, embora suas bestas continuassem a carnificina, e Abigail sentiu-se atraída para dentro do trailer. Notou, porém, antes de atingir o próprio corpo para ocupa-lo que havia nela mesma outra presença.

Estavam em seu corpo as formas etéreas daquelas asas e as protuberâncias de garras. Kadah a havia possuído. Sentiu-se em pânico, havia sido enganada? A sensação durou poucos segundos antes da própria divindade falar em sua mente.

— Você me pediu proteção e ofereceu um acordo. De agora até o fim de seus sentimentos e motivações, seremos uma só. Sua alma será meu alimento. Você não é mais uma coisa viva, você sou eu.

O pânico foi substituído de imediato, assim que o choro de Gabriel voltou a seus ouvidos. Era por ele quem estava se sacrificando. Aquelas bruxas lá fora o queriam para seus objetivos, e morreriam tentando.

Ela também morreria.

Sua forma mudou. Um manto escuro lhe sobrepôs completamente. A pele ressecou até quase restar apenas ossos. Os remanescentes de asas foram ramificando e se partindo, transformando-se numa vasta quantidade de coisas parecidas com galhos ressecados, tomando forma a partir de seus ombros e erguendo-se também como uma coroa sob sua cabeça.

Então sentiu sono. Uma vontade incapaz de ser contida. Aquilo era ela, uma coisa além do véu cuja única finalidade era a proteção do seu filho. Permaneceu em estado de vigília ainda, enquanto aquela forma explodia o lugar de dentro pra fora, como se expandisse além dos limites físicos do motor home.

Aquelas que não morreram com as bestas ou com as partes do veículo foram perfuradas, sodomizadas, esmagadas e preenchidas pelas coisas em suas costas. Abigail adormeceu dentro daquele corpo guardando como última lembrança o prazer daquela retaliação.

Após as mortes. Cada besta voltou rastejante para aquela nova criatura, reduzindo de tamanho e escondendo-se por baixo do mando de ébano. Quando todas haviam retornado, a própria imagem desapareceu como se absorvida pela escuridão.

O caso foi tratado com espanto pelas autoridades locais. Uma quantidade de sangue incalculável e pedaços de corpos encontrados, sem possibilidade de identificação, além do pequeno milagre.

Havia uma cama no meio do que parecia ter sido um grande incêndio. Em cima dela encontrava-se uma criança enrolada numa manta, viva. Ao encontra-lo, duas coisas chamaram a atenção do investigador.

Imediatamente ao vê-lo, uma sensação arrebatadora de que seu nome era Gabriel.

E a quantidade de gravetos claros ao redor dele, como se formassem um ninho, intocados pelo fogo.

Proteja meu FilhoDonde viven las historias. Descúbrelo ahora