Eu só queria...

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Ok, isso não pode ser real. Numa hora estou caminhando na trilha com um monte de gente e na outra estou perdida em um mundo de folhas, literalmente. Folhas pequeninas flutuando em todo canto num lugar sem pé nem cabeça, sem céu nem chão. Estranho como entre tanto verde, de tons diferentes, alguns amarelos e vermelhos, não tem nenhum galho ou árvore.

Sou o tipo de pessoa garota da cidade, elétrica, que responde mensagens rapidamente, daquelas que esquecem os e-mails, e quase sempre com patins nos pés. Venho um dia fazer trilha e isso acontece. Bem, acho que isso não costuma acontecer. Sinceramente eu só queria ter um chão para pisar... E até que Renato Russo tinha razão. "Quem acredita sempre alcança", não é que comecei a sentir uma leve pressão nos pés? As folhas embaixo de mim se juntavam formando um caminho macio.

Isso tudo é loucura, principalmente quando a sensação é de se estar deitada, flutuando, e você sente pisar em alguma coisa. Por um momento a sensação era de estar andando por paredes ou algo assim. Mas, cara, isso faz sentido. Quando estava andando com meus amigos lembro de ter dito o seguinte:

- Sinto tanta falta de ar puro, isso tudo aqui é tão bom, tão bonito, que eu só queria me perder nesse mar de folhas.

Agora penso comigo. E se... Eu só quisesse controlar tudo ao meu redor, livre-livre? Bem, é só isso que todos querem no fim das contas, então, vamos lá. Levei os braços para cima e joguei com tudo para baixo. As folhas flutuantes se dispersaram, eu queria que elas fossem embora, meu mundo se resumiu a uma bola de folhas, como se estivesse presa dentro de um balão de festas. Antes de mais nada, ainda estou flutuando e isso irrita depois de um tempo. Gravidade seria uma boa, e... Meu corpo caiu com força, por um segundo achei que um dente havia quebrado.

Gravidade demais.

No fim consegui equilibrar as coisas. Como apenas de chão e paredes ninguém vive, um céu claro e um horizonte. As folhas caíram imediatamente. Por mais que não tivesse sol por enquanto, gostei assim mesmo.

Foi a partir daqui que as coisas começaram a sair do ritmo. Pensei em chocolate, mais especificamente em construções inteiras, uma cidade só de chocolate. Quem nunca? Eu só queira isso... No lugar veio chuva. Chocolate é legal e tudo mais, só que nas roupas e pelo corpo já é exagero. Então eis que surge uma árvore brotando logo perto dos meus pés. Bem conveniente como ela ficou tão grande e pendurava tantas frutas diferentes. Sendo sincera comi algumas delas com o chocolate que escorria, acho que vou sentir falta disso, mas agora...

Eu só quero voltar.

Fechei os olhos esperando ter meu mundo de volta. Não rolou.

Tentei diversas vezes mudar aquele lugar, a chuva não parava e já estava até os joelhos de chocolate. Quando tudo parece errado, se renda ao erro. Abri os braços e me joguei para trás. Esperava que meu corpo fosse atraído para baixo, a sensação foi a contrária, como se estivesse de pé e todo mundo girou ao meu redor até sentir a pancada do líquido morno bater em mim. Desmaiei.

Eu fui longe demais. Precisava mesmo querer aquilo tudo? Seja como for, acordei num lugar bem diferente.

- Será que funcionou? – a voz nervosa de um garoto perguntava.

- Ela parece morta. Talvez eu tenha exagerado na carga. – Dessa vez a voz era de uma senhora.

Tentei abrir meus olhos, senti as pálpebras levantarem eternamente, ainda sentindo o peso de olhos fechados.

- Ela está bem! Calma, calma... É provável que você não nos veja. Meu nome é Theo, ao meu lado estão Kátia e Leandro. Também fomos pegos pelos Semptrias. Eles ainda estão com você?

- Eles quem?

- Semptrias – respondeu Kátia. – Uns bichinhos que vivem mudando de forma.

- Do que vocês estão falando? Essa escuridão toda está me enjoando.

- Fica deitada. Eu sou o tal Leandro, quanto mais você se mexer pior vai se sentir, acredite. Se ainda não achou nenhum, você tem sorte. Eles são criaturinhas que se alimentam dos nossos desejos. Primeiro nos dão tudo que queremos para depois, bem, ficamos na angústia. Quanto mais nos dão, mas queremos, quanto mais queremos, mais eles sobrevivem.

- Onde eles estão?

- Por todo lado – continuou Theo. – Essa é a realidade deles, não a nossa. Nunca vimos como realmente são, quando estão conosco se disfarçam de coisas do nosso mundo. Segure isto – Theo puxou minha mão e entregou um tipo de chaveiro, ou algo parecido. – Conseguimos prender um deles, está fraco e continuará assim enquanto estiver dentro desse vidro.

- Minha querida, qual seu nome? – perguntou a lenta voz de Kátia.

- Jéssica.

- Ok, Jéssica, se salve. Nós captamos atividade de uma realidade nova, da que os Semptrias criaram para te prender, por isso você só nos escuta e sente, estamos manipulando sua realidade, mesmo que não possamos invadi-la. Como ainda é recente você ainda é capaz de enfraquecer aquele lugar, só precisa ter calma. Quanto mais tranquila ficar, menos força sua realidade vai ter.

- E depois? – Agora estou realmente assustada.

- Boa sorte, tchau, Jéssica!

Foi aí que meus olhos abriram, justamente quando mais precisava deles. Meu corpo estava submerso na enchente de chocolate, agora o mundo parecia bem maior que antes. O horizonte estava mais distante, o céu mais alto, o chocolate mais gostoso, hmm... Calma. Foi o que disseram. Calma.

Coloquei o tal Semptrias no bolso e simplesmente boiei. Deixei meu corpo livre.

- Isso é tudo que eu queria.

O chocolate se agitou, eu achei o máximo, deu sono! Quando olhei para cima o céu se esticava, estava frágil, até se rasgar, lançando raios para tudo quanto é canto. Aquele mundo começou a se abrir, um caos completo. Quando parecia estar acabando, um dos raios acertou minha mão esquerda, senti ossos se quebrando. O choque me levou direto para a trilha, o mesmo ponto do qual fui puxada dali.

Minha mão esquerda estava esfacelada, a dor era tanta que meu maior desejo era que a dor parasse. Então lembrei, puxei um tipo de chaveiro de bolso e lá estava. Uma criaturinha dentro do vidro. Como Theo disse, ele assumiria formas conhecidas, naquele momento tinha meu corpo! Quando percebeu que não estava mais no próprio mundo, olhou para os lados e tomou forma de uma borboleta. Grande disfarce.

Minha mão de fato nunca foi a mesma, ele estava fraco, minha dor diminuiu muito e pude voltar para casa.

Desde então guardo o Semptrias no meu quarto, esperando, um dia, saber se Theo, Kátia e Leandro sairiam de lá. Uma coisa é certa, hoje tomo muito cuidado com aquilo que quero, por mais normal ou bizarro que seja, ter tudo o que queria me levou ao caos, e isso nunca mais vai acontecer.


Eu só queria...Where stories live. Discover now