Pássaros

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          O olhar distante que lançava sobre as pessoas que iam e vinham em seus afazeres deixava claro que devaneava. Acostumado como estava a colocar em marcha os pensamentos, mal percebia o que passava-se em seu entorno. Um incomodo interno lhe consumia a atenção. Ter a plenitude invadida assim depois de tantos anos lhe deixou perplexo. Uma curiosidade infantil lhe invadiu no entanto, de saber poder ir mais longe. Os sábios sabem exatamente quais jogos jogam. Deixar-se levar por um ou outro é sempre uma questão de escolha. Mas emoções fortes o cegaram e acabou por seguir jogos impuros, reconheceu-se humano novamente. Não pode deixar de sorrir, sorriu como sorriem os imortais, ciente da pequenez humana. Estava de volta ao controle clarividente de sempre. Feliz em reconhecer o pequeno erro, triste em saber-se imune ao mundo. Se nem ela poderia lança-lo e faze-lo perder-se nas amarras do mundo, certamente ninguém mais poderia.

          Quando foram a praia, unidos como se há muito se conhecessem, não podiam sequer lembrar como viviam antes, de tal modo haviam se entranhado na vida um do outro. Estavam em contato íntimo. Habitavam aquela região mágica do encontro, as barreiras que haviam entre eles foram rompidas, em cada gesto, sem que fizessem esforço para tal, eram verdadeiros. A pureza que havia nele se espalhara e parecia ilumina-la. Dava-se a impressão de que algo nela, há muito esquecido e não alimentado, algo que se escondera ou fora escondido em seu interior finalmente fizera seu caminho a superfície. Seu sorriso agora era o mais belo e puro que já havia visto, ele que há muito recebeu elogios pelo seu, finalmente compreendeu a mágica do sorriso. A felicidade de tal criatura tornou-se-lhe meta, havia se preparado a vida toda para detectar e cultivar tal pureza.

          A observar o mar, diante da força da natureza, conversando sobre filosofia com seu amado, foi tomada por uma verdade. Os homens, estes que por aí cruzam mergulhados cada um em seu drama, atentos demais á realidade para poderem aspirar ao universal, são meras vítimas da vontade. Como nunca traçaram um caminho, caem vítimas de seus desejos e das oportunidades que os cruzam. Assim são os homens, apenas um, de todos que conheceu não se encaixava nessa definição. Sentava-se ao seu lado agora, os olhos fixos no horizonte, este era diferente pensou. Parecia ter um curso fixo, um caminho que certamente lhe custou muito desbravar, razão pela qual possuía essa sabedoria quente com o pensamento minuciosamente desenvolvido. Tal homem parecia mesmo imune ao entorno, não por inércia, mas os fatos o atravessavam sem que pudessem desvia-lo de sua meta. Seu sorriso sublime demonstrava perfeição. Ela e somente ela tinha o poder de adentrar-lhe a existência.. Ela sempre havia sonhado com alguém assim. O peito apertado, o coração desassossegado, pulsando forte demais, sem que percebesse, chorava. Ele a olhou em lágrimas, abraçou-a, antes que pudesse dizer qualquer coisa ela sussurrou um te amo, seguido por outro e mais outro. Por longos minutos ficaram ali, até que por fim sorrindo, ela dirigiu-se ao mar.

          Uma menina de branco que entra nas águas do mar... Lança um olhar de volta... O sorriso esconde o mistério que guardou com tanto cuidado. Enquanto dança... Distraída, a água pelos joelhos... Sentado na areia, Burton, observa. O que busca com ela é inatingível...o mistério de sua alma feminina jovem é insondável, ainda que lhe compreenda até os ossos. Infinitos. Ele não ignora que ela lhe prepara algo. Mas o espírito está agora com ela. Em tudo o que se passará, será um expectador. Forças maiores que eles estão em ação. Se ela queria ou não perder-se em meio as águas, ninguém nunca soube precisar. Talvez nem mesmo ela. Ainda sorria é certo. O impulso de viver ainda era poderoso e selvagem. Os seres, mesmo os divinos, estão sujeitos a natureza. Alguns diriam que pereceu, mas Burton sabia que os seres divinos não morrem de verdade, diria que sua garota finalmente conseguira asas, sua garota pássaro agora voava livre, cantava com as gaivotas, mergulhava a perturbar os peixes... Outros achavam que a imensa dor da perda para ser suportada se fez acompanhar de loucura. A verdade é que perdera contato com o único elo que tinha com o mundo. Seus olhos antes poderosos agora espelhavam o cosmos... Distantes do mundo dos homens. Um corpo nunca foi encontrado... Nem tal poderia ser o caso dizia ele.

          Nas poucas vezes em que voltou a este mundo construiu uma cabana no alto de uma encosta. Do alto podia ouvir os pássaros e ver o mar. Os últimos a visitá-lo apesar de verem uma melhora, tentavam dissuadi-lo de morar em local tão perigoso. Ao que Burton dizia com um sorriso inocente: Por que te preocupas tanto? Desapareceu numa tarde de agosto. Muito buscaram por algum sinal de seu corpo. Buscavam no chão, quando deviam olhar para o alto. Ignoraram completamente o belo canto do pássaro negro no alto do telhado.

(Fim da história, o restante são reflexões dos personagens)

Musas Vestem Branco - O que Se Ama Se Perde (Capa Lady InsaNa)Where stories live. Discover now