1# Um Tempo Antes

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Todos me conheciam

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Todos me conheciam. Eu nasci e me criei na mesma cidade. Onde os avós aprenderam a engatinhar juntos e viram os filhos dos outros engatinharem também. Todos conheciam uns aos outros. Era uma cidade de fofoqueiros, como toda cidade pequena...

Eu ajudava na padaria todas as tardes depois que chegava da escola técnica. A padaria estava na família desde o meu avô. Era uma cidade pequena e velha, onde os negócios, na maioria das vezes, era familiar e a economia local não se expandia muito.

Detesto meu trabalho, repeti pela enésima vez desde que começara o expediente.

Meu celular vibrou e quando liguei a tela, vi que Cadú estava tentando confirmar se eu iria sair do trabalho e me encontrar com ele em frente à sorveteira na rua de trás. Como se eu tivesse algo melhor para fazer... Revirei os olhos, expirando com força. Arranquei o avental e o joguei embaixo do balcão. Havia uma fila de pessoas para comprar pão e eu fingi estar indo no banheiro, mas saí pelos fundos. Fora do calor da padaria, o vento soprava forte e frio, fazendo com que o suor evaporasse da minha pele. O cheiro de pão estava me dando enjoo.

Ouvi passos vindo em direção à porta dos fundos e acelerei, dobrando na esquina no último segundo. Ainda consegui ouvir o barulho da porta de metal se abrindo, mas já não se podia ver onde eu me encontrava. Senti o alívio me engolfar e respirei fundo mais uma vez, abrindo um sorriso.

Finalmente Cadú tinha conseguido o carro dos 18 anos. Não era nada novo ou fantástico. Era apenas um carro que o tio dele tinha deixado pegando poeira na garagem. Mas Cadú, que trabalhava na oficina do seu avô, começou a ajeitar o motor, inclusive investindo sua mesada magra naquilo, desde o dia que o Paulo disse que, contanto que ele consertasse o carro, poderia ficar com a lata velha.

Cadú não tinha carteira, mas ninguém se importaria dele estar dirigindo na estrada de barro batido comigo durante à noite. Principalmente porque era o neto do mecânico que cobrava mais barato na cidade, sem falar que a chance dele atropelar alguém ou causar um acidente era quase nula.

Enquanto caminhava meio correndo, meio andando, ouvi uma buzina e tentei focar no final da rua. Dobrei a esquina e vi Cadú sentando num banco de couro todo rasgado. A lata velha fazia um barulho como se o motor estivesse engasgando e fosse morrer a qualquer momento. A tinta azul-desbotado estava mostrando algumas partes enferrujadas e tinha um amassado na porta do motorista.

- Tem certeza que isso aí vai conseguir rodar um quilômetro sem morrer no meio do nada? - indaguei com um sorriso zombeteiro enquanto chutava o pneu careca da frente.

- Entra aí e deixa de ser idiota. - Ele mostrou um sorriso animado. Eu podia sentir sua exultação e aquilo me animou também.

Fui em direção ao banco do carona e puxei, mas a porta só fez um barulho de metal atritando contra metal e continuou travada. Cadú passou pelo câmbio e, com o ombro, empurrou a porta por dentro, eu saí do caminho a tempo, a porta deu um tranco e abriu-se toda, até bater e começar a voltar. Segurei-a, antes que ela batesse e travasse novamente. Carlos voltou ao seu banco. Ao entrar e sentar no assento todo rasgado e mostrando a espuma, eu puxei a porta com força. Rezei pra não ter que sair pela janela caso a porta não abrisse mais, porque a do motorista não funcionava.

Tinha umas latas suadas de refrigerante no painel, e eu abri uma de laranja. Procurei o cinto de segurança, mas não tinha. Caso ocorresse um acidente e Cadú perdesse o controle da direção, eu esperava ter força suficiente para segurar o assento e não ter meu corpo lançado pelo para-brisa.

- Fiquei tão animado quando o motor pegou e eu rodei uns duzentos metros, que nem limpei o Ferrugem. - Meu amigo abriu um sorriso perfeito de dentes brancos para mim.

Tínhamos apelidado o carro assim desde que o vimos na garagem do Paulo, no ano passado, enferrujando sobre o pneus murchos. O Ferrugem tinha pertencido a um vizinho do vô de Carlos, que acabou falecendo com o carro ainda no conserto. Como ninguém nunca viera reclamar o automóvel, Paulo o usou por um tempo, mas acabou deixando o carro abandonado na garagem quando adquiriu um Gol. Então o velho Corcel da Ford agora era de Carlos Eduardo, ou Cadú.

O interior do carro fedia, mas estávamos animados. Simplesmente abrir as janelas e acelerar o máximo que desse. Se o carro rodasse, a gente não pegaria mais o ônibus todos os dias de madrugada, podendo dormir mais meia hora. Prometi que ia contribuir com a gasolina e o acordo estava feito.

Cadú engatou a primeira e acelerou, a lata-velha fez um barulho de que estava morrendo e começou a andar, bem devagar, engasgando e chiando. Eu realmente não estava com esperanças dele sobreviver nem um dia, imagina o resto do ano, indo e vindo diariamente.

- Agora com o Ferrugem, a gente deixa de andar naquela sardinha e eu posso dormir mais uma hora. O chato é que o estacionamento é longe demais das salas - ele reclamou, me olhando. O que me deu medo e apontei pra estrada, para ele se concentrar.

- Quando você vai tirar a carteira? - Comecei a derramar o resto do refrigerante fora, o braço esticado para fora da janela, depois amassei a lata e a joguei em cima do painel.

- Daqui duas semanas. Vou aproveitar e nesse tempo continuar o upgrade em Ferrugem e dar uma lavada nele. Você soube que a filha do Augusto ta grávida? - Ele tinha essa mania de mudar rapidamente de assunto na mesma frase. - E o mais interessante é que o namoradinho dela diz que não é dele - proferiu, todo animado, os olhos brilhantes.

Como eu disse, cidade pequena.

- Quem te contou?

Martha era uma menina reservada que não falava muito. Estava na escola técnica com a gente. Fazia o segundo ano. Eu não acreditava naquilo. Eu sabia que ela tinha sonhos grandes e era inteligente. Cadú batucou com os dedos de unhas sujas no volante. Cadú sempre tinha as unhas pretas, não importava o quanto ele as esfregasse, a graxa nunca saía. Apenas seu pai, que trabalhava na prefeitura da cidade, tinha unhas limpas e alvas, a maioria dos homens na família de Cadú possuía as unhas tão escuras quanto as dele.

- Foi a Suzana, mas não conta que eu contei - confidenciou-me.

Suzana era amiga de Carlos porque foram da mesma sala no fundamental. Mas era uma vaca. Era uma das pessoas mais ricas da cidade, por conta disso sempre estava bem vestida e seguindo tendências. Tinha um canal no Youtube onde dava dicas de moda e gostava de tirar fotos de pratos de comida para postar no Instagram. Mas isso não a tornava uma vaca, sua língua grande, sim. Tudo isso associado à sua falta de filtro na hora de falar.

Eu girei a manivela para abrir mais a janela, mas emperrou e eu não conseguia abrir mais, mesmo que a manivela continuasse a girar, o vidro não descia. Abri o porta-luvas, mas tinha apenas poeira e uns papéis amassados. Fechei. A paisagem de Gabriel Alencar não era nada bonita de se ver, então fiquei mexendo no celular.

A gente já estava rodando há uns dez minutos, quando avistamos alguém na estrada. Cadú diminuiu o farol e espiamos para ver quem era. Uma mulher estava sentada numa pedra. Eu não me lembrava dela na cidade, e nem Cadú, pela expressão idiota que ele a olhava. Quando passamos por ela, levantando poeira, ela ergueu a cabeça olhando em nossa direção, soltou a fumaça pelo nariz, semicerrando os olhos. Começou a se levantar, sua postura era meio largada, os ombros levemente curvados. O carro passou e ela ficou para trás.

E foi ali que eu conheci Miranda.

E foi ali que eu conheci Miranda

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