Ataque de papel

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Não pude nem ao menos conferir as últimas notícias do meu último dia, a seção política, a violência sem fim contra os cidadãos, um pouco de economia e, claro, o futebol. As pontas dos meus dedos escurecidas dos anos que passei folheando as manchetes do papel seco, encardido e malcheiroso dos jornais diários – e Deus sabe quão fiel eu fui a eles! – foram arrancadas do meu corpo para, junto com meus braços destroçados, serem lançadas num canto qualquer para apodrecerem. As cordas entrelaçadas nas minhas pernas, atreladas a dois cavalos que as arrastavam com força, logo esbugalharão de vez as chagas das minhas coxas com a virilha e abrirão as veias encharcando os últimos tendões que ainda não se arrebentaram, dilacerando meus membros e dizimando meu corpo a um tronco em farrapos.

Vendo minha carne esfacelar-se, esvaziando de sangue que se verte pelas feridas, penso como estará amanhã a minha morte nos jornais. Serei o destaque da capa? Uma pequena nota de rodapé? Ou me perderei entre tantas outras manchetes que mancham de vermelho as páginas policiais? Chego até a pensar numa cena cômica, enquanto mergulho nos devaneios de uma consciência que se vai, de como estaria eu, sentado à varanda, tirando meu jornal do plástico e bebericando meu scotch 8 anos – sempre tive a certeza que mais da metade das pessoas que dizem não conseguir beber qualquer um abaixo de 12 anos não passaria num teste às cegas – lendo minha própria morte, correndo às palavras enquanto crio a cena na minha cabeça, acertando um erro qualquer de concordância que passou ileso no pente do revisor. Na verdade, eu, agora, não vejo mais nada, a vista familiarizada ao preto das letras no papel claro não reconhece mais qualquer contraste, apenas uma grande massa escura que toma todo um espaço.

Mesmo não fazendo muita diferença, fecho meus olhos, não sem antes, no meu último fio de lucidez,pensar em toda ironia que me levou a ser morto por uns papéis que se inundarão do meu sangue, mas não se rasgarão tão facilmente como as fibras do meu velho jornal.


***



Burlar os deveres tributários, praticar certas manobras ilegais, embora nem sempre imorais, dado o descaso do poder público com o dinheiro. Não só os meus princípios, o imposto retido na fonte de um funcionário público também não me permitiria a tais artimanhas. A aposentadoria veio com honestidade, até um pouco além, valessem os anos que trabalhei, ainda adolescente, nos negócios da família. As obrigações estavam em dia, a prestação do carro e a pensão do filho. Se há tempos já não tinha esse dever legal, o dever moral me fez até aumentar o valor, um alento para sua vida acadêmica que iniciava.

Dediquei meus últimos anos para concretizar o desejo de viver a aposentadoria no interior, num pequeno sítio que me daria algumas sacas de café, escondido numa cidade que apenas começava a conhecer a fibra ótica e as poucas e inconstantes ondas que levavam o fraco sinal da internet ao seu "Centrinho", privilégio de meia dúzia de famílias que recebiam, aos finais de semana, os filhos vindos da Capital. Nunca tive qualquer aversão à tecnologia, mas confesso que não me adaptava a todos aqueles botões que se achataram em "telas de toque", ao retrocesso dos aparelhos que um dia foram pequenos e voltaram a grandes. A velocidade, os flashes, a reunião do café substituída pela imagem atrasada da tela virtual.

Sempre confiei mais na concretude do papel, no cheiro da tinta fresca entranhada nas fibras que logo estarão amareladas, mas timbradas com palavras que não escaparão do julgamento do tempo. Tomar aquele café puro e forte pela manhã, encher os pulmões com o aroma da erva doce que corre a cerca da propriedade vizinha, sentar no banquinho da pracinha próxima, passar a vista no jornal e depois umedecer a mão áspera de tinta no orvalho das graminhas do chão.

Se no interior eu não tinha todos os jornais da cidade, desde àqueles maiores, aos distribuídos sem custo nos semáforos, ao menos estava livre daquelas alternativas indecentes, falaciosas, que enchiam a cabeça dos bobos. O importante é que o meu jornal preferido estava aqui, como estava em qualquer cidade e rincões mais afastados do país.


***



Foi numa manhã, quando já me aproximava do banquinho que gostava de ler as notícias, que percebi uma folha de papel agarrada a um dos meus sapatos. Uma folha espessa, meio brilhosa, possivelmente de alguma criança da escolinha da redondeza. De um sapato passou para o outro e, desse, de volta ao primeiro, numa brincadeira de guerra entre meus pés na tentativa de se livrarem do papel que só fazia grudar ainda mais. Só depois de muito pisoteio e de arrastar a folha numa pedra próxima que consegui me ver livre.

O banco estava vazio, não fosse um pequeno pássaro vermelho de papel, um tsuru meio torto, mal dobrado, certamente dos pequenos aprendizes que tiveram alguma lição básica de origami e espalharam sua nova moda pela praça. O passarinho me fez recordar as poucas dobras de papel que me aventurei com meu filho quando criança, mais pelas lições de geometria do que pela mágica da arte oriental. Ver na dobradura a bissetriz dos ângulos do quadrado, os teoremas euclidiano e pitagórico, os vincos que dão vida às arestas de um poliedro, toda a maravilha de recriar bichos e objetos em um arranjo de polígonos.

O voo que o tsuru de papel alçou associei somente ao vento, apesar de fraco, e apesar de ter voado quase como um pássaro de verdade, talvez um filhote desajeitado. No seu lugar ficou, sem eu perceber como, uma florzinha branca de cinco pétalas, também de papel, também fruto dos pequenos da escolinha, era o que pensava, pelo menos. Não era ligado a datas comemorativas, e nesses tempos que comemoramos até dia de assombração que os gringos inventaram só para as crianças catarem doces, não me admiraria a escola aqui do interior estar comemorando uma data japonesa, talvez chinesa, o início do ano do macaco ou as lembranças das ruínas de Hiroshima.

Acabei por não ler o jornal, senti um certo mal-estar, enjoo, dor nas têmporas. Dobrei suas folhas e coloquei de volta no plástico para ser lido mais tarde, depois de uma boa refeição e algumas horas de sono à base do melhor calmante que encontrava por aqui, umas generosas doses da velha cachaça no bálsamo que guardava em casa.

No curto caminho da pracinha à residência notei mais alguns origamis. Muito mais, para ser franco, como se as crianças tivessem reservado muitas pilhas de papéis e toda uma semana de trabalho. Pequenos cavalos, sapos, caminhos de flores, tsurus, homenzinhos tipo samurais e diversas outras formas, algumas desconhecidas, mas todas estranhamente belas.

Em casa, dormi.

À noite, acordei. Um barulho invadia meu quarto. No limite confuso entre o sono e o despertar, minha vista identificou alguns pequeninos origamis observando meu sono, enquanto outros tomavam formas de algumas folhas coloridas e brilhosas espalhadas pelo chão. Uma delas se dobrou na diagonal de um quadrado para formar um triângulo isósceles, seguidas por mais algumas dobras, vincos, intersecções que davam em outros triângulos menores, trapézios irregulares e, por fim, um samurai que logo tomou em mãos uma adaga que acabava de surgir de uma outra folha.

Observava reticente o estranho espetáculo dos pequenos bichinhos de papel. Muitos outros origamis apareceram, alguns montados em cavalos e trazendo cordas e facas reais, não de papel. Foi tudo muito rápido.

Invadiram o leito em que eu repousava e amarraram meus membros sem que eu esboçasse qualquer reação.

Não foi preciso muita força para distender e arrancar meus braços, primeiro o direito, depois o esquerdo, levando junto alguns pedaços de carne e de ossos que se fragmentaram das minhas espáduas e axilas. Os membros inferiores, saturados de adrenalina, resistiam aos arrastos dos pequenos cavalos de papel e foi necessária a faca para romper os tendões e serrar os últimos nacos de carne até as articulações. Talvez os pequenos origamis samurais deveriam, ao invés de um, terem usados dois ou três cavalos para dilacerar cada uma das pernas. Ou talvez o mesmo tempo que me acompanhou ao longo desses anos e enegreceu as pontas dos meus dedos, secou os meus tendões, roubou-lhes a elasticidade, a resistência às dobras, reduzindo-os a uma massa calcificada e enrijecida como um osso difícil de se partir.

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⏰ Last updated: Jan 29, 2020 ⏰

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