Capítulo Seis

24.7K 2.6K 193
                                    

Levantei-me rapidamente e corri atrás da garota. Queria conversar, olhar mais um pouco, conseguir seu número de whatsapp, qualquer coisa.

Encontrei-a de novo do lado de fora do bar, embarcando no ônibus, coincidentemente o mesmo que eu iria pegar. Corri e consegui alcançá-lo antes que a porta fechasse.

O ônibus estava praticamente vazio. Uma senhora de idade estava sentada logo à frente, um homem dormia encostado na janela, um casal de namorados se beijavam nos banco de trás... E Samaris. Segurando o seu violão, olhando para a rua, com o cabelo preso em um rabo de cavalo.

Não sentei ao seu lado. Sentei no outro lado do ônibus, paralelo ao banco da Samaris. Sempre que fingia olhar para a rua, espiava um pouco, procurando uma brecha para puxar assunto, ou ao menos criando coragem.

Em uma das espiadas, nossos olhos se encontraram. Gelei instantaneamente.

Ela sorriu. Sorriu para mim. Um sorriso de canto de boca, convidativo. Fez um sinal para eu me aproximar e, por um segundo, permaneci imóvel. Uma força invisível me fez levantar e sentar ao lado dela. Seu perfume era bom, seus lábios eram volumosos, seus olhos eram intensos:

— Oi — ela disse. — Você estava no bar, não é? Eu te vi lá.

— Bem... — Senti vergonha por ter sido flagrado a encarando fixamente durante duas horas seguidas. — Sim, eu estava lá.

— Nossa! Você está encharcado!

— Eu peguei um pouco de chuva. Aliás, entrei no bar só para fugir da chuva. Acabei vendo o seu show por acaso.

— E gostou do que viu?

— Sim, claro. Adorei. Aliás, Let it Be é uma das minhas músicas preferidas!

— Que bom que gostou. Eu também adoro Let it Be, era uma das músicas que o meu pai mais gostava de cantar para me fazer dormir. Ainda tenho saudades dele. — E acrescentou de forma inesperadamente casual. — Meus pais morreram em um acidente de carro há três anos.

— Lamento. — foi o melhor que consegui fazer, não sei como devo me portar frente a uma pessoa me contando uma história dessas. Não sabia nem por que ela me contava.

— Não lamente — respondeu, sorrindo. — Eles tiveram uma boa vida, e morreram poeticamente juntos. Tenho certeza de que estão abraçados nesse momento em algum lugar. Entende?

— Entendo... — na verdade não, mas queria mudar o mórbido assunto para algo mais leve. — E hoje você mora com quem?

— Não moro. Quando meus pais morreram, deixaram uma boa herança. Completei dezoito anos e peguei todo esse dinheiro, um violão, e hoje vivo de tocar e cantar mundo afora.

— Sério?

— Sério — ela ri em frente à minha incredulidade. — Cheguei nessa cidade hoje, estou hospedada em um hotel aqui por perto. Nunca passo mais de um mês na mesma cidade. Desde que comecei a viajar, há um ano, já passei por vários estados e cidades, cantando em alguns bares, boates e casas de show. Ganho um pouco cada noite, claro. Mas o cachê não se faz tão necessário, tenho o suficiente no banco e um estilo de vida com o qual não preciso de muito para viver. Só o suficiente para comer, beber, pagar a conta do hotel e manter minhas roupas limpas. Mesmo assim cobro um pouco por cada noite, nunca se sabe, né?

Depois de poucos minutos de conversa, já estava encantado por Samaris. Ela compunha as próprias canções, costurava as próprias roupas, cortava o próprio cabelo e escrevia a sua própria história. 

Conversamos durante todo aquele trajeto do ônibus, rimos muito, contei sobre mim, e Samaris fez o mesmo. Contou sobre como nasceu em uma família rica e odiava aquele mundinho de glamour; contou sobre como foi difícil perder os seus pais; contou sobre como toda a sua família fora radicalmente contra a sua decisão de viajar pelo país inteiro sozinha e como não entra mais em contato com eles por medo de que arrumem uma maneira de encontrá-la e forçá-la a voltar para casa. Obviamente também contou sobre as milhões de histórias que havia acumulado nas viagens que fez.

 Depois de um tempo de conversa era como se nós já nos conhecêssemos há anos. Estávamos em perfeita sintonia, rindo das mesmas coisas e bastante interessados na conversa. Enquanto Samaris falava, eu conseguia prestar atenção no que ela dizia ao mesmo tempo em que me perdia admirando as nuances do seu rosto, as curvas de seus lábios, os seus olhos puxados. Eu poderia desenhá−la daqui a dez anos da mesma forma como a vi nesse dia, pois decorei cada traço, cada detalhe de seu rosto.

Falei muito sobre mim também, especialmente o que aconteceu naquela noite. Falei da festa e não escondi nem a minha explosão de raiva quando quebrei o armário de troféus.

—... E depois, ainda peguei uma tremenda chuva! Depois de me molhar todo, foi que eu entrei no bar — finalizei a história dizendo — A sua música salvou minha noite!

— Parece que você não teve a melhor noite da sua vida.

— É... Mais ou menos. — na verdade eu considero essa noite uma verdadeira tragédia, mas não me sentia bem reclamando de algo desse nível perto dela, que já perdera os pais e passou por situações bem piores.

— Posso te contar uma história? – Samaris perguntou.

— Uma história?

— Sim, ela me ajudou quando os meus pais morreram, e me ajuda sempre que tenho um dia ruim.

— Conte, então.

***

Eu escrevo de graça para você, mas considero que os votos e comentários são o meu pagamento. Eles ajudam a aumentar a visibilidade da história dentro do Wattpad. Se você gostou do capítulo, por favor, deixe um voto e comentário.

A VIDA DESENCAIXADA DE ICK FERNANDES (história completa)Onde histórias criam vida. Descubra agora