BRANDO

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Já estava em meio dia de trabalho. Desde que caí do alto de uma prateleira que nunca mais fui o mesmo. Era tão ágil e rápido, agora sou manco e lento. Não tão lento como a Daniela, mas também ando devagar. Ao menos tive sorte, foi um milagre ainda conseguir andar. Alguns também dizem que tenho alucinações quando vejo um corvo de três olhos que me guia quando estou a dormir. Tenho a certeza que não são sonhos, são mesmo premonições. Eu vi a cadeira de ouro mesmo antes dela ser colocada nas lojas, o corvo mostrou-me. Não são delírios, eu tenho a certeza. Mas deixo-os para mim, já que ninguém acredita neles.

Muitas vezes ainda me lembro do meu misterioso acidente, a minha misteriosa queda da prateleira mais alta da loja. Tinha ocorrido há uns seis anos. Era ainda um gaiato de dezoito anos, mas muito mais espevitado que o Tomé. Todos os meus colegas precisavam de bancos mas eu trepava as prateleiras agilmente. Até um dia. A prateleira mais alta dava visibilidade para o escritório. O Jaime era recente na loja, embora a Lena já andasse por lá a alguns anos. Quando trepei a prateleira olhei para os vidros, e embora fosse difícil ver o que estava a haver lá dentro, consegui ver que estavam lá o Senhor Jaime e a Lena. Não sei nada de leitura labial, mas posso jurar que naquele momento o que ele lhe estava a dizer era "As coisas que eu não faço por amor!" Não sei se foi isso que ele realmente lhe disse, mas o que é certo é que me desequilibrei nesse momento, como se ele me tivesse empurrado apenas com essas palavras.

Desde aí sou manco! Não posso culpar o Senhor Jaime nem a Lena, pois eles não me atiraram da prateleira, não directamente, mas por dentro acho que eles merecem dar-me algo, e talvez sentar-me na cadeira de ouro fosse o prémio mais aceitável para uma queda que me causou tantos danos. Às vezes o gigante do talho ainda me carrega ao colo quando me vê mesmo aflito. Fico tão constrangido com isso, mas às vezes é como me sinto, um inválido que precisa de alguém para o ajudar a deslocar-se. Eu devia trazer uma bengala para me ajudar, mas por vergonha prefiro andar sem ela. Às vezes dói-me, mas antes uma dor física que o orgulho ferido.

E era mesmo isso que estava decidido a fazer, ir falar com o senhor Jaime para que ele me deixasse ser eu a sentar-me na cadeira de ouro. Se há alguém que tem direito de lá sentar a peida, sou eu. Sim, um manco não devia passar tanto tempo em pé. Além disso, depois de andar tanto tempo a repor a loja ainda tenho de ir para a fila para pagar as minhas compras. Sim porque a caixa prioritária é muito bonita mas ninguém me deixa passar. É um acto cívico, pois claro, mas há alguém cívico? Só se é cívico quando se tem alguma coisa a ganhar. Depois resmungam com o operador da caixa como se ele tivesse culpa por não ter deixado passar a prenha, a idosa, sim porque ele além de ter de passar os produtos todos sem se enganar, se não cai o Carmo e a Trindade, ainda tem de estar atento a esse pormenor.

A educação cívica não vem quando o que está à frente olha de esguia para a prenha atrás dele e vira rapidamente a cara quase borrando a cueca com medo que ela tenha visto que ele reparou, a educação vem quando um grupo de cachopos vem para a fila ter com os amigos e traz mais uma data de coisas ou quando a velhota deixa o cesto a marcar lugar e depois quer passar na mesma mas já lhe passaram à frente e ela faz um escabeche que só falta atirar com o cacete que ainda vem quente da padaria à cabeça de quem a passou. Vejo muitas padeiras de Aljubarrota nesta batalha que é pagar as comprar no gondipeco.

A caixa central surgiu para tornar tudo mais rápido, mas naquele Gondipeco, isso não está a acontecer. O Tomé é mais um atraso que não digo nada. Não percebe patavina daquilo. Ele tem que sair daquela caixa. Ele está a destruir a boa reputação da loja. Quando olhei para o escritório vejo que o Jaime está acompanhado. A coordenadora das lojas, Liana está com ele. Devem estar a falar sobre quem ocupa o lugar na cadeira de ouro. Como estavam tão entretidos consegui entrar como se tudo aquilo não passasse de uma visão. Escondi-me sorrateiramente num pequeno poste para conseguir ouvir a conversa.

"Sabe quem é a melhor pessoa para se sentar na cadeira não sabe? Aliás, ele tem o direito a tudo aqui nesta loja Jaime! O João das Neves é portador do sangue do patrão. O Sangue do homem a quem pertence esta cadeia de supermercados corre-lhe nas veias." – Revelou Liana. Esta revelação deixou-me completamente surpreso! O João das Neves é familiar do patrão? Então ele de certa forma é aquele que tem mais direito em sentar-se na cadeira de ouro.

"Isso mesmo que ouviu Jaime!" – Voltou Liana a dizer ao nosso gerente. – "Por isso ele veio emprestado por tempo indeterminado para esta loja, porque descobriram na outra que ele era familiar do patrão. Ele gosta de viver no anonimato, por isso o melhor é ninguém descobrir isso. Não comente com mais ninguém." – Continuou Liana. – "Sendo assim, acho que a funcionária que tem melhores capacidades para a cadeira de ouro é a Margarida. É bonita, parece simpática. Acho que é isso que procuramos em quem se senta naquela cadeira. Amanhã quero vê-la lá sentada na cadeira quando aqui vier" – Concluiu a coordenadora.

Embora goste da Margarida, depois de saber de quem o João das Neves é familiar acho que não restam dúvidas de quem merece se sentar na cadeira de ouro. Vou já pedir ajuda à Aérea e à Sonsa. Saí do escritório da mesma maneira que entrei, sem eles darem por nada!

GAME OF BOXES - A GUERRA DAS CAIXASOpowieści tętniące życiem. Odkryj je teraz