Capitulo 2- Eu também

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Meu pai era um homem jovem. Não sabia com o que, onde ou para quem trabalhava, mas sabia que era algo de natureza sobrenatural. Ele sempre desviava o foco da conversa quando eu perguntava algo relacionado.

      Sempre saía cedo de casa e era costume voltar bem tarde, mas naquele momento, olhando no fundo dos seus olhos e suas unhas roídas, um costume que ele não conseguia largar, percebi que havia sido um longo dia.

     Ele usava um óculos que sempre pendia para a ponta do nariz e a sua barba rala mostrava que estava ocupado demais para apará-la, o cabelo castanho claro estava por cortar e os olhos verdes pequenos não demonstravam semelhança alguma com os meus. O único aspecto que nos assemelhava era o porte magro e a teimosia implacável. 

     Seu nome era Robert, e pela maior parte da minha vida ele foi tudo o que eu tinha e eu fui tudo o que ele possuía, ele era meu ponto permanente em meio a metamorfose constante.

      Enquanto pensava no destino que essa conversa seguiria, acompanhei meu pai à mesa de jantar, que quase nunca foi usada. Devido ao horário tardio do final de seu expediente, eu acabava preparando algum petisco para matar a fome sozinha e comia no meu quarto. Era sempre assim, em todas as nossas mudanças a mesa de jantar era aquele móvel empoeirado, esquecido.

      Sentamos frente a frente e pude perceber que o nervosismo tomava conta de seu corpo, estralava os dedos das mãos e olhava para baixo e para os lados, as poucas vezes que o vi assim foram raros momentos depois da ida de minha mãe.

       Percebi que finalmente criou coragem e começou a falar:
     
         — Você já está completando dezessete anos...
   
           Tive uma vontade imensa de revirar os olhos, mas não o fiz. Esqueci que amanhã era meu aniversário, pedi mentalmente para que parasse com essa conversa, ele sabe muito bem que não entendo o motivo de comemorar aniversários. Claro que ele não ouviu minha súplica mental e continuou:

       — Não sei começar essas conversas, sua mãe que tinha o jeito para essas coisas... — Riu fraco — enfim, queria dizer que sou extremamente orgulhoso por você, eu te amo filha, mas acho que está na hora de te esclarecer algumas coisas.

      Oi? Esclarecer? Coisas?

     Um silêncio mortal invadiu o ambiente antes que ele continuasse:

      — Preciso que você me acompanhe, tenho certeza que não compreenderia minhas palavras da forma correta.

     Ok! Eu tinha duvidas e estava na hora das perguntas. Meu camafeu estava começando a esquentar.

       — Pai? Acompanhar pra onde? É alguma piadinha de aniversário? Você sabe que eu não gosto disso e que... — fui interrompida por um pedido que mais parecia uma ordem:

      — Confia em mim, Lu.

      Não tive escolha, entrei no carro e meu pai começou a dirigir em meio a noite escura, ao tatear o bolso percebi que na pressa de acompanhá-lo esqueci meu celular em casa. Não haviam muitos carros por ser quase o início da madrugada.

        Eu estava tensa, nunca gostei de andar de carro, principalmente nessa situação e nas madrugadas de sextas feiras onde jovens embriagados dirigiam sem rumo para provar o quão são imbecis para aqueles que chamam de amigos. 

        A luz fraca do carro era o único que iluminava a pista escura com final inatingível. Olhei de relance para a única pessoa que eu tinha e comecei a pensar como seria minha vida sem ele, tenho mais algum parente em meio esta família conturbada? Acho que nenhum próximo, afinal nunca tivemos aquelas reuniões familiares no dia de ação de graças, ou algo parecido. Meu pai me abandonaria? Não, claro que não. Como iria me sustentar sozinha? Esqueci da minha idade por um momento e quando lembrei, parece que o acaso estava espreitando meus pensamentos.

      Tudo ficou em câmera lenta, e uma luz vinda de um lugar não conhecido invadiu o carro pequeno, de repente entrei no que parecia ser um looping infinito, meu camafeu estava pegando fogo. Olhei ao redor enquanto estilhaços voavam e eu o vi.

     Vi novamente aquilo que me observava nas sombras da minha infância, estava ali. Não sei exatamente onde, sendo que em momentos o chão estava no teto e em outros minha cabeça direcionada ao asfalto, mas por uma fração de segundos eu tive certeza do que vi. Aquele sorriso amarelo acompanhado por olhos fundos e escuros, a pele que mais parecia ser couro rasgado e o jeito que aquilo me encarava. Não pode ser.

     Quando tudo parou, me dei conta do que havia acontecido, havíamos sido atingidos por algo que possuía uma força brutal. Tentando assimilar os fatos, lembrei-me que a luz invadiu o carro pela esquerda, lembrei onde estava. Banco do passageiro.

     Quando olhei para meu pai minhas suspeitas foram confirmadas, meu pai havia sentindo o impacto maior. Não consegui ver seu rosto, mas seu corpo estava coberto por uma quantidade absurda de sangue. Tentei mover-me e gritar por ajuda, mas estava presa em meio aos destroços.

      Estava ao lado do corpo ferido de meu pai, se não morto, sem poder fazer nada e ninguém estava ali, ninguém poderia me ouvir, ninguém poderia me ajudar. Ninguém poderia o ajudar. A agonia de ser inútil continuou a me corroer, eu precisava fazer alguma coisa.

      Lembro que olhava em volta em busca de socorro, e tudo escureceu. Em meio à dor e os destroços, meus ouvidos captaram um sussurro, um adeus:

      — Eu te amo Lu.

     Eu também te amo papai.

Lúcifer - Marcados pelo Sangue Wo Geschichten leben. Entdecke jetzt