Capítulo Único

635 38 122
                                    

 O frio aumentava à medida que o escritor entrava no quarto. Ele nunca entendeu esse frio que sentia ao entrar no cômodo, só sabia que congelava cada canto de seu ser, fazendo-o sentir como se estivesse se obrigando a dar o próximo passo. O vislumbre de sua amada sempre enchia seu peito com um misto de impotência e pena. Toda vez que entrava, prometia a si mesmo que seria mais fácil da próxima vez mas, quando chegava a hora, gastava vários minutos se preparando, em frente a porta. Da próxima vez será mais fácil, ele repetia mentalmente, a medida que começava a vê-la. Vai ficar mais fácil. Os olhos cor de âmbar da esposa estavam fundos e com o olhar vazio direcionado ao horizonte. Seus braços estavam tão fracos que era possível ver perfeitamente os ossos se destacando, abaixo da pele, que parecia tão ressecada que fazia-o sentir que podia rachar com o mínimo toque. Os lábios, sem cor, apresentavam rachaduras em vários pontos. A morte pairava no olhar daquela mulher, que já fora muito bela. Ao vê-la naquele estado, sua memória ia, involuntariamente, de volta para a roda de poesia onde se conheceram. Nunca se esqueceu a poesia que a mulher havia escrito sobre Apolo. Parecia que ela emanava o calor do próprio deus sol, a cada verso. Ali, naquele quarto frio, ela não se parecia nada com a bela garota de alguns anos atrás mas, definitivamente, nada havia mudado no coração dele.

A poetisa virou a cabeça, debilmente, tentando dirigir o olhar pro marido. Seus lábios se moveram, mas ela só conseguiu proferir sussurros incompreensíveis. O escritor pegou gentilmente em sua mão e, com a outra, acariciou seus cabelos, enquanto esperava a visita do padre. Ele nunca havia sido religioso, mas já havia esgotado todas as opções. Um médico, amigo da família, havia ido até a casa alguns meses antes, descobrir o que se passava com aquela mulher, mas aquilo não parecia com nada do que havia visto. Mesmo não sendo supersticioso (o que era difícil, na pequena cidade onde vivia), chegou a ponderar que fosse uma maldição ou bruxaria consumindo-a, até que nada mais restasse. Mas seria absurdo, certo? Ele pensava. Não sabia ao certo, só tinha certeza de que, apesar de já ter visto inúmeras pessoas em um estado próximo da morte, ficar na presença daquela débil mulher lhe causava arrepios. O diagnóstico mais lógico seria o de uma praga ainda desconhecida.

— Você precisa levar ela pra um hospital. — O médico disse, quando se certificou que estavam distantes o suficiente da paciente. — Lá eles vão tomar todos os procedimentos possíveis.

— Não posso. — O escritor respondeu de forma seca. — Eles vão interná-la e mantê-la longe de mim. Aqui eu posso cuidar dela. Tem um quarto nos fundos que ninguém usa. Eu posso colocar umas...

— Calma. Você precisa me ouvir. Ela precisa de atenção médica, o que ela tem é muito...

— Ela não quer! — O escritor gritou. — Ela quer ficar em casa! Comigo. Eu vou cuidar dela e tudo vai ficar bem. Ela não vai precisar se preocupar com nada. (Vai ficar mais fácil). Vai dar tudo certo. — O escritor gesticulava muito e não fixava o olhar em qualquer ponto por mais de alguns segundos, como se ele estivesse desesperadamente procurando algo pra provar o que dizia.

O médico percebeu a futilidade de tentar convencê-lo do contrário. Ele podia tornar isso em uma grande batalha judicial, de modo a levá-la a um hospital mas, com certeza, até alguma decisão satisfatória sair, já seria tarde demais. Não havia porquê insistir.

— Bom, se essa é sua decisão, só me resta respeitar. Mas posso lhe dar algumas recomendações. Acomode-a em um cômodo afastado. Você tinha mencionado um quarto nos fundos? Deve servir. — O médico tirou um bloco de anotações do bolso do jaleco e arrancou uma folha. — Contratar uma enfermeira seria uma boa ideia, apesar de eu achar que nenhuma pessoa sã vai se prestar a cuidar de alguém com uma doença desconhecida. Mas caso encontre alguém... altruísta o suficiente, aqui está uma lista de cuidados e recomendações. — O médico pensou por alguns instantes. — A última coisa que posso aconselhar é que não pare por causa disso. Continue com a sua vida.

LutoWhere stories live. Discover now