#1 Crush

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Aviso de gatilho: esse texto pode não ser recomendado para quem já viveu situações de perseguição e abuso físico. A leitura fica por sua conta e risco.


Em um saquinho ziploc eu guardo uma mecha do cabelo dela, envolto por um elástico bege; tudo isso fica muito bem escondido em um bolso secreto que tenho em todos os meus casacos. Sempre que eu mudo de roupa, meu bem mais precioso me acompanha, como um amuleto da sorte, um totem que é só meu. Às vezes, quando não consigo vê-la, ele serve como uma lembrança mais do que física de sua presença — ela transcende qualquer estado da matéria e é por isso que eu consigo senti-la junto a mim quando o fantasma de seu cheiro me invade as narinas. Já não tem quase nada dela e ainda assim, é ela. Nos momentos em que a vida é pesada demais, toco a lembrança e uma onda me atinge. Eu estou em êxtase, sufocando e respirando como se fosse a primeira vez; ela me renasce e ela é minha.

Então solto a memória e volto ao mundo em que tenho que esperar quase duas horas para o relógio chegar às seis. E quando ele chega, eu preciso passar mais uma hora no trânsito. Quantas horas o mundo me rouba dela ao todo? Já nem sei dizer. Eu, que amava matemática, só consigo pensar agora em uma equação: aquela em que nós somos o resultado final. O meu amor por números ganhou um norte. Os vinte e quatro anos, cinco meses e sete dias que ela tem. Os setenta e oito passos que ela dá de seu apartamento até a padaria. Os vinte e cinco minutos contados que ela passa no chuveiro.

Assim que chego em casa, troco as roupas por algo mais confortável. Terça feira é dia de sair para comer pizza. Ninguém resiste às promoções. A encontro saindo do prédio e a acompanho até a pizzaria que fica a duas quadras. Não gosto que ela vá sozinha porque o bairro de noite pode ser perigoso e eu sou a pessoa mais adequada para protegê-la. Ela é grata a mim, ainda que não diga com palavras.

É bom estar com alguém com quem a gente se sente seguro.

Na volta para casa, eu me despeço em silêncio, lhe desejando bons sonhos só com o olhar. Mesmo quando ela dorme, minha guarda não baixa jamais. Estou sempre à procura de qualquer sinal de alerta e só me afasto dela no instante em que o sono me vence. Confiro todos os cômodos antes de ir para cama, me certificando de que a única pessoa que está com ela sou eu.

De manhã, nos arrumamos juntos. Ela escova os dentes, eu escovo os dentes. Ela toma café, eu tomo café. Ela vai para o chuveiro, eu vou para o chuveiro. Ela se veste, eu me visto. Ela vai para o trabalho, eu vou para o trabalho. E só o que tenho por todas aquelas horas são suas fotos e videos em meu celular e o seu cabelo, muito bem escondido.

Uma vez, um dos meus colegas de trabalho ligou a tela do meu telefone para conferir as horas. Ele se deparou com a foto dela que uso como protetor.

— Sua namorada?

— Sim, é minha namorada.

Depois disso, em duas ocasiões perguntaram quando a conheceriam. Eu sempre sorrio e digo que logo, mas não quero tirá-la de nosso mundo particular onde só existimos nós. Assim como eu também não faço parte do lado chato de sua própria vida. Gosto que sejamos só nós e isso me faz feliz. Por que estragar?

* * *

Quarta feira. Dia de ficar entocada e assistir séries até de madrugada. Eu a conheço como ninguém e logo que chego em casa vou direto para as tvs. Mas ela não está na sala, nem no quarto, muito menos na cozinha ou no banheiro. Não a encontro em lugar nenhum. Não está no apartamento ainda, o que para ela — tão cheia de hábitos — é estranho. Penso em ligar, contudo, da última vez que fiz isso, ela se irritou e desligou o telefone na minha cara. Infelizmente ela não consegue entender que eu me preocupo.

#1 Crush (Conto)Where stories live. Discover now