01. Sinal de fumaça

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Abas e mais abas se acumulavam em desordem na tela do ultrabook. Desde que recebera a ligação perto de nove da manhã, Tiago Boanerges não parava de pesquisar uma notícia que justificasse o contato. Havia vasculhado cada blog conhecido sobre segurança e incidentes feéricos, inclusive os de mídia independente, sem conseguir nenhuma informação relevante.

Três anos haviam se passado. Três longos anos sem que o procurassem, e agora queriam marcar uma conversa agradável e informal, o que quer que essas palavras significassem para eles. Tiago sabia que nem a quantidade de copos descartáveis na máquina de café do Conselho de Hórus era determinada ao acaso, por isso pesquisava. O motivo do contato devia estar ali, em algum lugar, disfarçado de evento corriqueiro – o aumento no índice de assaltos de um bairro, uma exposição de artefatos vinda da Noruega, o helicóptero de um político interceptado contendo drogas e ossadas de basilisco.

De fone no ouvido e concentrado, sequer notou um filete de fumaça deslizar discreto por sob a porta de entrada e se condensar no que parecia ser um nimbo cinzento. A nuvem subiu até a altura da maçaneta e pegou impulso, indo parar bem no meio da sala, onde girou em torno do próprio eixo para um lado e de volta para o outro, como se espantasse para longe a preguiça. Em seguida, projetou quatro patas, uma de cada vez, definindo no meio delas a barriga gorducha de um gato. De pé, espichou a coluna para trás e exibiu as garras dianteiras. Quando voltou à posição original, abanou um rabo falhado e mostrou sua cabeça de orelhas pontudas. No lugar dos olhos, duas esferas negras espiavam o ambiente.

O bichano flutuou para frente percorrendo um muro imaginário e desceu sobre a bancada entre a sala e a cozinha. Driblou uma caveira de gesso, um celular, folhas empilhadas e cadernos de anotações. Numa patada desleixada, derrubou a xícara de chá gelado que atrapalhava seu caminho.

Tiago se levantou num sobressalto, o fone arrancado do ouvido.

"Caramba, Ori! Não dá para ser um pouco menos bagunceiro?", ralhou ele, e foi buscar um pano no armário da pia logo atrás de si. O estrago havia sido menor do que o susto. O líquido escorrera para o lado oposto aos papéis, molhando somente a caixa de uma pizza agora fria.

Tiago espalmou as mãos na bancada e contou até dez. Não queria descontar no gato a ansiedade que o consumia devido ao telefonema. Ignorando o momento de perigo, Ori se aninhou no teclado e pechinchou atenção. Antes de ser enxotado, recebeu uma dose de carinho que espalhou suas orelhas etéreas no ar.

"Pelo menos você não me enche de pelos", disse ele mais relaxado, sentando-se novamente no banco. Encontrava-se ali há quase doze horas. Havia parado apenas para pedir comida e se arrumar. Depois de um banho demorado para colocar os pensamentos em ordem, vestira uma das muitas calças xadrez que o acompanhavam nas noites de trabalho, seus sapatos surrados preferidos e uma camiseta de malha.

Ficou espantado ao ver no canto inferior da tela que já eram dez para as oito da noite. Havia perdido a noção do tempo durante a pesquisa pela rede. De qualquer modo, daqui a pouco, não precisaria mais de adivinhações para saber o motivo do contato. Iria se encontrar com o antigo supervisor pela primeira vez desde que o Conselho de Hórus o afastara há três longos anos por violar as normas em uma missão. Queria causar uma boa impressão, mostrar que estava muito bem sem o apoio deles, obrigado, e uma mancha de chá preto não ajudaria.

Apressado, saltou de dois em dois os degraus da escada e foi para o banheiro do segundo andar verificar se a roupa havia se salvado. Em frente ao espelho, encarou os olhos cinza e deu uma geral em si mesmo. Aproveitou para acertar a barba no rosto com a máquina, deixando-a bem rente, e eliminar a parte do pescoço, acompanhando os traços retilíneos do maxilar. Sua pele branca precisava mesmo de um pouco de contraste.

A ligação o tinha pegado de surpresa. Por muitos meses depois da demissão, cada vez que o celular tocava, esperava ouvir algum agente do Conselho comunicando que tudo não passara de um mal-entendido e que ele teria seu cargo de volta. Com o passar dos meses, porém, acabou se acostumando com o silêncio e a nova situação.

Marcos Sardenha marcara o encontro sem entrar em detalhes, mas o tom de sua voz soara amistoso. Uma pontada de otimismo recorrente durante o dia dizia a Tiago que talvez lhe dessem uma segunda chance. Entretanto, cada vez que o sentimento surgia, fazia questão de esmagá-lo como a um inseto cascudo. Tinha aprendido a esperar da vida mais problemas do que soluções e a lidar com fatos, mas dessa vez as expectativas haviam escapado da masmorra.

"Você não é um perdedor. Não importa o que ele te diga hoje, você é melhor do que qualquer um deles. Do que todos eles juntos", disse de dedo em riste, apontando para o seu reflexo.

A bronca surtiu efeito. Tiago esboçou um sorriso com a própria idiotice, umedeceu o cabelo preto e curto nas laterais, e passou uma fina camada de mousse para arrumar a franja que insistia em cair na testa. Não se arrependia de seus atos, e se a expulsão do Conselho tinha sido o preço a pagar, estava disposto a continuar convivendo com ele.

Preocupado com a hora, decidiu sair de uma vez. De volta ao primeiro andar, pegou o blazer no encosto do sofá e o girou no ar para encaixá-los nos braços. Marrom quadriculado com finas linhas azuis, costumava reservá-lo para ocasiões em que não correria o risco de se engalfinhar com alguém interessado em arrancar seus rins.

"Ninguém veste um blazer tão rápido quanto eu, Ori. Você devia me dar algum crédito por isso", falou, vendo a cabeça do gato pairar sobre a bancada sem o restante do corpo.

Tiago deu uma última olhada no ultrabook e salvou mais uma página nos favoritos. Um homem havia parado o trânsito ao ficar nu em cima do carro e gritar "Vida longa à Rainha!" enquanto exibia um coração vermelho desenhado no peito. Talvez fosse só mais um bêbado. Talvez estivesse possuído. Mais tarde, pediria a Julia Yagami, sua pupila, para aprofundar a investigação.

Uma metrópole como Libertà nunca deixa os jornalistas na mão, pensou, baixando a tela. Em seguida, vestiu suas luvas de exorcista. Elas deixavam a ponta dos dedos à mostra e possuíam no dorso, revestidos em couro, dois bastões de citrino na forma de um xis que funcionavam como seu ponto de foco, seu amuleto. Um jeito simbólico de mostrar a Marcos que ser um mago independia de autorizações de outrem.

De pé na porta, repetiu para si mesmo: mantenha a calma, não caia em provocações, e ouça o que ele tem a dizer. O máximo que vai acontecer é você voltar para casa como uma leve frustração no peito, nada que uma boa música e uma boa companhia não resolvam.

No fim das contas, é apenas uma conversa.

Oque pode sair errado?

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⏰ Last updated: Feb 07, 2017 ⏰

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Exorcismos, Amores e Uma Dose de BluesWhere stories live. Discover now