A minha cidade

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Quando eu era pequena, eu tinha aquela mania de subir até ao ultimo andar daquele velho edifício e de me sentar numa das cadeiras que ali estavam abandonadas, e assim quase como secretamente, olhar para a cidade debaixo dos meus pés. Daquele ponto de Vista a cidade era minha, minha e só minha, tão minha que eu sentia que a podia abraçar. Olhava para as pessoas lá em baixo, pareciam formigas a subir e descer a rua. Em segredo eu queria imenso que aquela cidade fosse um daqueles globos de vidro que fazem com que neve depois de agitados, e punha-me a imaginar como seria ter alguém a olhar para nós todo o tempo.
Ficava ali sentada praticamente toda a tarde e ao pôr do sol corria até casa e ouvia a mãe a queixar-se.
"Katherine! O que eu te disse sobre chegar a essas horas! ?"
Eu tentava justificar-me, mas eu sabia que a mãe não entenderia. Ela nunca entendia, naquela altura tudo o que importava era se a casa estava arrumada ou se os pratos estavam lavados, ou se eu fazia os deveres da escola.
Mas eu sabia que se a mãe contemplasse aquela vista, ela compreenderia. No fundo, eu não queria que ela visse, queria que fosse algo meu e só meu, que mais ninguém tivesse a opurtunidade de contemplar. Afinal, lá de cima a cidade era minha, minha e só minha, e eu não gostava de partilhar.
Um dia, e já tinha eu os meus onze anos, a mãe chegou a casa com caixas e sacos vazios, e disse-me ela que estávamos prestes a mudar de cidade.
E claro que o meu coração se despedaçou, como podia eu abandonar a minha cidade?
Como a mãe dizia, eu já era crescidinha, não podia fazer birra.
Senti muita necessidade de o fazer, mas decidi calar-me, subir uma última vez ao telhado daquela minha biblioteca abandonada e só quando sentada na minha cadeira, com a minha cidade debaixo dos pés,  deixei que a tristeza tomasse conta de mim e chorei.
Partimos no dia seguinte para uma vila no interior. Era calma e tinha poucos habitantes. O Logan adorava lá viver, mas eu, durante todo o tempo que lá vivi, detestei completamente a experiência.
Toda a gente se conhecia, o ponto mais alto era um reservatório de água e mesmo esse nem era metade da biblioteca da minha cidade.
As pessoas gritavam imenso e sempre que havia uma festa, toda a gente era convidada para ir comer uns tremoços e beber umas cervejas.
Fiz poucos ou nenhuns amigos, eles achavam-me "nariz empinado" e uma completa arrogante, mas era principalmente porque eles não entendiam do que eu falava, ou porque nunca haviam visto os filmes que eu via quando eu era feliz na minha cidade.
Só me senti feliz no dia em que me formei e disse adeus aquela triste vila.
A mãe lá chorou muito e disse que eu não precisava de ir embora logo tão cedo, mas eu fiz questão de partir assim que pude.
Não voltei para a minha cidade mas fui para uma ainda maior. Aquela não era minha de certeza absoluta, aquela não era de ninguém, era enorme e contagiada de pessoas e ritmos e melodias, era como uma estrela brilhante no meio da escuridão, era um diamante em bruto. Era livre e selvagem, não deixava que ninguém a domasse.
E eu sentia-me livre ali.
O tempo não parava naquela cidade, quase não dava pelos dias passarem e a noite então, dissipava-se num piscar de olhos.
Entrei num ciclo vicioso, trabalho, festas, amigos, festas, trabalho, festas e festas e música e ritmos e trabalho de novo, e amigos e festas e não parava um segundo.
Até que um dia o meu celular tocou em meio àquela confusão e o nome "mãe" brilhou no ecrã, a senhora telefonava todos os dias, mas não aquela hora, nunca àquela hora.
A mãe estava doente. Estava doente e não iria recuperar. E disse-me ela assim que voltei para aquela triste vila, no segundo em que sentada e diante dela, com a sua mão entrelaçada na minha e ja com lágrimas nos olhos, "Katherine, não ouses em me enterrar nesta triste vila, quando eu morrer eu quero ser enterrada na cidade onde nasci, onde tu nasceste e cresces-te. Onde fomos felizes"
O meu irmão nunca quis entender o que se passava com a mãe.
O que ele sabia era que assim que ela partisse, ele teria de deixar todos os seus amigos e ir viver para o estrangeiro  com o pai.
Ele chorou muito quando a mãe começou a perder cabelo e quando já estava magrinha e ossuda.
Mesmo sabendo que ela tinha pouco tempo, eu esperava anciosa por um milagre que a salvasse.
Um dia chegou o pai com um ramo de flores, beijou a mãe na testa e abraçou-a, tão fortemente e tão docemente que me fez lembrar os tempos em que ainda eram casados.
A ternura com que olhou para ela, disfarçando a clara dor que pairava sobre si, até a mim me comoveu.
Naquela tarde deixei os dois a conversar e fui passear com Logan.
Durante os poucos meses que haviam passado, o rapaz transformara-se e crescera repentinamente.
Lá falamos um pouco e eu dei-lhe um beijo e um abraço e garanti-lhe que eventualmente tudo ficaria bem.
O pai ficou por lá uns dias. Era ele que ia ver como a mãe estava quando de noite a sua dor era insuportável. Eu tapava os ouvidos de Logan, puxava-o contra mim e sossegava-o.
A mãe chamava-nos para perto dela e dizia para sermos fortes, e em meio às lágrimas que se formavam nos seus olhos, sorria com ternura, massageando a mão de Logan.
No último dia em que o pai lá esteve, ele veio até mim e deu-me um abraço gigante. E mesmo disfarçando eu vi as lágrimas nos seus olhos, ambos sabíamos o que vinha a seguir, e sabíamos que a próxima vez que nos encontrariamos seria no funeral da mãe, mas não abordavamos essa questão.
Ele deu-me um envelope com dinheiro para cobrir próximas despesas e garantiu-me que, quando acontecesse, Logan seria tratado com o maior carinho e respeito e que ele iria fazer de tudo para que ele fosse feliz.
A mim ele lançou-me apenas um sorriso e disse que me tinha tornado numa linda mulher, com um futuro brilhante à minha frente. Disse que não me podia dizer mais nada, só que me amava e que sentia imenso por não acompanhar o meu crescimento.
Eu perdoei-o naquele momento. Senti as suas palavras sinceras e tive de o perdoar.
No mês seguinte chegaram mais familiares que choravam e traziam dinheiro e outras coisas para ajudar aquela situação.
A mãe estava triste e eu podia sentir isso, ela não queria a família a chorar em torno dela, ela procurava apenas paz.
Então um dia eu liguei o gira discos antigo que ela lá tinha na estante da sala e toquei uma das suas músicas preferidas "Heaven".
Ela fechou os olhos descansada e segui-o a letra atenciosamente, abanando levemente a cabeça ao som da melodia, relaxada, descansada, em paz.
Aquela noite foi a noite em que a vi mais feliz, ao som da música,  rindo de Logan a dançar, verdadeiramente feliz e despreocupada.
Acabamos todos por adormecer na mesma cama, abraçados, em família, felizes.
A última recordação que eu guardei da mãe foram os seus olhos azuis brilhantes, e o seu sorriso encantador enquanto abraçava Logan.
Além da mais bonita, a mãe era a senhora mais carinhosa e mais bondosa que eu tinha conhecido e a mais corajosa e brava que existia.
No mês de Abril ela fechou os olhos, prendeu a respiração, permitiu que um ultimo "Eu te amo" escapasse dos seus lábios e partiu. Estava finalmente em paz.
E assim como prometido, e como a mãe me exigiu que fizesse, partimos para o sítio onde enterrariamos a mãe, a minha cidade.

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⏰ Last updated: Apr 23, 2017 ⏰

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