PRÓLOGO

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A pouca luz que resistia à noite despindo-se escorregava pelo teto emaranhado de galhos e folhas. Os troncos dispersos, nodosos, úmidos, manchados de musgos e outras formas de vida em colônia, erguiam-se colossais como pilares à sustentar a abóbada deste templo em guarnição e reverência à natureza. O chão, respingado de pontos luminosos que desciam em feixes perfeitamente delineados contra o ar, cobria-se das folhas putrefatas depositadas insistentemente umas acima das outras pelo tempo, contudo, mantinha-se intocado e livre de quaisquer galhos, arbustos ou rochas. Era tão plano quanto naturalmente possível estendendo-se indefinidamente entre os limites indefiníveis da floresta. O silêncio reinava. Nenhum pio, estalo ou resfolego; nenhum rastejar, nem mesmo das folhas tocando-se ao embalo da brisa. Não havia brisa. Tudo era estático naquela grande e imensurável catedral, eterna, tanto no tempo quanto no espaço, recoberta por um manto de quietude sepulcral.

O garoto corria, tão rápido quanto seus músculos mostravam ser capazes de flexionar-se. No entanto, sem carregar consigo a certeza de um destino, como preso em um labirinto no qual não recordava ter entrado, ele seguia incansável em busca de uma razão ou uma saída. Mas a floresta o cercava em todas as direções indiferente ao seu esforço. Troncos compridos e tão altos que terminavam sem ter realmente um fim passavam por ele seguidamente e, uma vez após outra, de tempos em tempos, ele torcia seu caminho por entre eles. Seguiu indefinidamente, perdido, correndo, o tempo recusando a correr com ele: as sombras e as réstias de luz mantinham-se inalteradas, a inclinação, a intensidade, a coloração, todo e qualquer indício de mudança revelando que esta não havia. Até que, tão inesperado quanto se viu estar correndo em meio às árvores, ele teve os olhos cegados pelo brilho repentino e a floresta abriu-se em uma grande campina. O sol, tão escuro e distante a ponto de parecer frio, deitava-se sobre o horizonte e refletia-se, ao longe, em águas claras e imóveis, indiscerníveis se presas em um lago qualquer ou se livres na imensidão do mar.

Ele parou. Piscou enquanto seus olhos livravam-se da luz para, no lugar dela, olharem mais à frente na campina perfeitamente circular. Crescendo solitário no centro da campina, impossível de passar despercebido, erguia-se um grande carvalho, seus contornos recortados contra o pôr-do-sol. Seus galhos, diferente de todas às árvores da florestas, altas e alongadas, eram retorcidos e tão baixos que alguns chegavam à poucos centímetros do chão irregular por onde suas sombras estendiam-se entre a árvore e o garoto. Ainda que fosse solitária, crescida por séculos no meio da campina, diferente da floresta que o garoto deixara para trás, esta árvore emanava vida. Pôs-se em caminhada, calmo, em direção à árvore até notar a silhueta humana sob a sombra os galhos do carvalho, indiscernível muito mais do que a simples silhueta.

Foi rápido, como se o tempo acordasse do seu transe e agora então fosse ele à correr em tentativa de recuperar a distância perdida: as sombras alongaram-se, o Sol se pôs e as estrelas explodiram no céu como uma revoada de flechas inflamadas. O ar quebrou-se em um grito desesperador e agitou-se com a força de um vento repentino. O carvalho queimou em meio a noite e iluminou o que antes era somente uma sombra: uma mulher, sua pele tão negra quanto o céu acima de sua cabeça, seus olhos tão brancos quanto o brilho das estrelas. A cabeça estava lisa sem nenhum fio de cabelo e coberta de símbolos desenhados com o que parecia ser sangue. O corpo estava nu por debaixo de uma túnica de um tecido tão fino e tão leve que poderia ser feito apenas de luz, flutuando e retorcendo-se nos lábios do vento. Os braços abertos, uma adaga curta de dois gumes em uma das mãos e uma serpente com a parte inferior do corpo rasgada ao meio, as entranhas escapando dependuradas por entre a fenda, apertada na outra.

O fogo pareceu mover-se, alimentar-se da noite. Ele crescia, circulava no ar, escorria pelo chão, cercando, vivo, ardente, porém sem calor e sem alcançar a figura feminina de braços abertos ao pé da árvore agora disforme e irreconhecível. A noite brilhou mais forte do que qualquer outro momento e então consumiu-se em chamas e no grito incessante. Tudo se apagou.


ZORATUSWhere stories live. Discover now