A névoa espessa cobria o extremo norte de Zoratus, onde se erguia, alheia ao restante do mundo, a antiga cidade murada de Mhina. Ali, entre os muros que outrora a defenderam dos perigos que percorriam os cantos do país em tempos de guerra, fome e caos, repousavam agora todos acolhidos pelo calor de suas paredes e pela proteção de seus tetos. O mercado ainda silencioso, a praça central ainda vazia dos feirantes que, logo, em procissão, tomariam suas calçadas de tijolos, o Trapiche e seus moradores desabrigados embalados em sonhos, a cidade dormia, assim também os animais e os camponeses nas regiões mais externas. O único lugar que apresentava algum sinal de vida tão cedo em uma manhã tão atipicamente fria, em plena primavera, era um bordel, O Carmim, em um beco do bairro mais maltrapilho e recluso da cidade, lar dos bares e dos pontos mercantis à beira da lei. Em frente ao bordel, umas poucas prostitutas se exibiam em busca do último cliente da madrugada. Lá dentro, os últimos beberrões jaziam sobre as mesas desacordados enquanto o atendente do bar assumia sua função de faxineiro. A cidade era embalada pela calmaria e pela paz que só a ignorância é capaz de conceder ao homens.

A muralha que circundava o sul de toda a cidade, serpeando por entre a floresta Alba, agora era tomada pelas ervas e pela ação do tempo sobre si. Cedera em diversos pontos; em outros, era apenas uma questão das rajadas de vento certas para que viessem por terra. O portão principal, forjado em ferro e trabalhado na cabeça de um grande carneiro (animais esses, junto de sua pele, gordura e carne, que já haviam representado o ouro de Mhina e sua importância para o resto de Zoratus) jazia enferrujado, cada metade retorcida e jogada ao chão tomado de folhas. Das nove torres de vigia, sete delas haviam abandonado seus postos e caído, cansadas, vencidas, aos pedaços. Das duas restantes, contavam aquela que se erguia do lado direito do portão e uma outra, a terceira à contar dessa. Quase que inteiramente intacta, no teto faltavam algumas telhas e o soalho do andar superior cedera com a umidade das chuvas que caiam pelos buracos. Nesta torre, encolhido entre vários retalhos de pele, inquieto ao contrário da cidade atrás de si, sonhava o menino Daren.

Um leve estalo vindo de fora pelas janelas banguelas de uma folha despertou Daren. Por mais intenso que fosse o sonho que tivera e por mais vívido que fosse, assim que abriu os olhos, os detalhes do que sonhara se esvaíram de sua mente. Incomodado com o barulho, não fez questão de tentar resgatá-los. Jogou as peles que o cobriam para o lado, revelando o corpo magro e nu, no auge do seu 16º jaar, e dirigiu-se até a janela. Conhecia aquele som. Por mais que o evitasse e por melhor que fosse em evitá-lo, Daren reconhecia o som de um galho seco cedendo sob o peso de pés humanos. Voltou-se apressado para seu leito e vestiu-se: uma calça de um tecido grosso e tosco, uma camisa do mesmo tecido e um casaco de diversas pelagens costurado grosseiramente. Amarrou na cintura uma tira de couro a servir de cinto, de onde pendiam alguns punhais de diferentes tamanhos e cortes. Foi então até a janela, subiu no parapeito e sem pestanejar, pulou. Mirara um galho muito fino e quando seus dedos o envolveram em busca de apoio, ele cedeu. Daren escorregou por mais dois galhos até conseguir se equilibrar e se apoiar em um que suportasse seu peso. No alto daquela árvore, ele fitou em silêncio, o chão dez metros abaixo de si.

A névoa começava a se dissipar lentamente mas ainda representava um impedimento aos olhos, mesmo àqueles treinados como os do garoto. Apurou os ouvidos. Alguns pássaros começavam seu canto, um pouco adiantados; fora isso, nenhum outro sinal de vida quebrava o silêncio e a monotonia da manhã. "Poderia ter imaginado", pensou consigo. "Dificilmente alguém vem até aqui, no centro da floresta, por livre e espontânea vontade, nem mesmo caçadores. E no caso de alguém perdido, não faria esforço para se manter oculto, pelo contrário." Ainda assim, algo em seus anos de caça lhe deixava intrigado. Era um som inofensivo, mínimo. Poderia ter sido algum animal grande, ou até mesmo os pássaros que agora ele escutava cantar em coro. A sensação de ser observado e o conhecimento acerca dos sons involuntários na natureza não lhe deixavam relaxar. Buscou dispersar essa sensação mirando o mar verde que agora se estendia para todos os lados, antes oculto pela branquidão da névoa. Para onde olhasse, tudo o que conseguia ver era o cume das árvores lado a lado. Uma revoada de pardais levantou voo ao longe, descrevendo círculos no ar como que em ensaio. Daren deixou o pensamento vagar incerto por muito tempo, observando a floresta acordar.

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⏰ Last updated: May 04, 2017 ⏰

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