A festa

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A lua cheia dominava os céus, esparramando sua luz pela escuridão como uma gota de sangue manchando a água límpida. E era bom que fosse assim, pois a zona urbana de Cluj-Napoca começava a se afastar e, junto com ela, ficavam para trás os carros e postes de iluminação, dando lugar a uma penumbra silenciosa.

O som dos passos de Andrei morriam na medida em que seus tênis trocavam o asfalto pela terra e pelo cascalho. Costel vinha logo atrás dele, era gordo e já andava esbaforido, reclamando do estrago que o suor faria em sua roupa, escolhida a dedo para aquela ocasião.

-É um lugar estranho pra uma festa - comentou ele, encarando as árvores altas da floresta de Hoia-Baciu. - Meu celular está sem sinal.

-Melhor assim, pensa as loucuras que podem rolar numa festa dessas - respondeu Andrei, atirando ao chão a lata de cerveja vazia. Ele recebeu com gratidão o aroma silvestre e orientou o amigo por entre os troncos velhos e contorcidos.

Aquela floresta era familiar para Andrei. Depois de ter se mudado para a casa da avó, na Romênia, era ali que ele encontrava paz quando as lembranças sufocavam-lhe os pensamentos com imagens daquela noite trágica: a máscara do assaltante, a faca pontiaguda, o sangue de seus pais escorrendo pela calçada...

-Tem certeza de que é por aqui? - indagou Costel, a respiração pesada como a de um porco velho e as axilas encharcando a camisa.

-Também estou sem sinal pra procurar, mas disseram que era na parte leste da floresta, deve ser em uma das clareiras – respondeu Andrei, tentando parecer tranquilo. Hoia-Baciu não lhe representava qualquer novidade, contudo, entrar ali era sempre motivo de arrepios: as lendas sobre a floresta eram difundidas por todo o mundo e ganhavam ainda mais força nas redondezas. Não raramente, notícias sobre sons inexplicáveis, visões macabras e desaparecimentos sobrenaturais corriam toda a Romênia.

-Não se preocupe, vamos chegar logo – continuou Andrei, esperando que o sorriso pudesse transmitir algum conforto ao amigo.

Eles haviam se conhecido há pouco mais de um ano, quando Costel decidiu quebrar o silêncio melancólico que circundava o novo aluno brasileiro. Desde então, faziam quase tudo juntos, fosse estudar para os exames da universidade, cuidar da avó acamada de Andrei ou ir às festas da região.

Fato era que Costel vivera experiências semelhantes às de Andrei e solidarizara-se com sua perda traumática. Era a compaixão que lhes unira numa amizade ainda em flor, mas já muito intensa, no entanto, a empatia e o companheirismo não bastavam para preencher o vazio crescente de Andrei, que o corroía por dentro, dia após dia, como se exigisse uma resposta quanto ao sentido de sua vida após o assassinato dos pais. O que faria a seguir?

Estudar como louco parecia uma ideia inicial bastante efetiva, mas o tempo passava e o conhecimento adquirido lhe parecia cada vez mais insignificante. Ao mesmo tempo, a amizade de Costel não passava de um exercício mútuo de pena: dois jovens solitários, um buscando conforto no sofrimento do outro, como companheiros de cela condenados à morte? "É deprimente", pensava Andrei, com frequência.

Sendo assim, ele impôs a si mesmo a meta de sair mais de casa e conviver com pessoas diferentes de uma velha doente como a avó, decidiu encontrar sentido para uma vida perdida e não pretendia fazê-lo sem o melhor amigo. Aquela noite seria o começo de suas novas vidas.

-O que é aquilo? – indagou Costel, apertando os olhos para enxergar uma luz fraca e bruxuleante à direita de onde estavam.

-Só pode ser a festa – empolgou-se Andrei, acelerando o passo.

-Achei que teria música – balbuciou Costel, coçando a cabeça.

Andrei diria alguma coisa, mas ao aproximar-se da clareira, as palavras morreram em seus lábios. Escondido atrás de uma árvore, ele podia ver com clareza o que havia além: era uma espécie de culto, foi a primeira palavra que lhe veio à mente, mas pensou nessa palavra com o teor mais macabro possível, pois no meio da clareira uma fogueira ardia e, sobre ela, um corpo humano. Ao redor do cadáver, cinco homens encapuzados molhavam as mãos no que parecia ser uma bacia de sangue e espalhavam-no pelas próprias roupas.

-O que é isso? – disse Costel, arregalando os olhos e não conseguindo conter o peso do queixo. Ele estava mais pálido do que Andrei jamais vira.

Não houve resposta. Os músculos de Andrei se enrijeciam de tal maneira que seria impossível tentar falar. Além disso, se dissesse qualquer coisa seria ouvido pelos encapuzados, em cujas túnicas brancas começavam a reluzir cruzes vermelhas.

Ele tentava ouvir o que era dito pelos membros do culto, mas Costel superou o som das vozes distantes e da carne humana em contato com o fogo, chorando baixinho em seu ouvido:

-Vamos embora daqui!

Andrei não disse nada, estava paralisado e o suor começava a descer pela testa. Quando seus olhos encontraram o estandarte na mão de um dos encapuzados, as memórias reviveram um nome ainda mais aterrorizante: Ordem do Templo Solar.

O símbolo no estandarte era uma águia de duas cabeças, com as iniciais "OTS". Representava uma seita dos anos 80 e 90, a qual acreditava na existência contemporânea dos Cavaleiros Templários e misturara elementos cristãos com inspirações ocultistas para fundar uma ordem responsável por assassinatos e suicídios em massa. Eles acreditavam na segunda reencarnação de Cristo e na prevalência do espírito sobre o corpo terreno, buscavam garantir uma transição adequada de seus seguidores para a vida eterna. Andrei já havia lido a respeito e imaginou que Costel ficaria ainda mais desesperado caso possuísse as mesmas informações.

Enquanto isso, banhados pela luz da lua e a claridade das chamas, os participantes do culto erguiam os braços, giravam em volta da fogueira e diziam coisas em latim, que Andrei compreendia vagamente: "incompleto", "esperar", "segundo corpo". Porém, se Costel não conhecia a Ordem, conhecia latim e assim que os encapuzados falaram, ele apertou o braço de Andrei, com força:

-Vamos logo! – implorou, em meio a lágrimas e tremores incessantes.

Andrei respirou fundo. "Encontrar sentido para uma vida perdida", disse para si mesmo, quando sua faca perfurou a barriga de Costel, rasgando-lhe as entranhas e deixando fluir o sangue. Fôra por buscar uma nova vida que ele procurara a Ordem do Templo Solar e não voltaria atrás em seu ritual de iniciação.

A dor e a surpresa competiam no rosto de Costel e, após a terceira facada, Andrei cochichou-lhe ao pé do ouvido:

-Me desculpe, mas precisamos de um segundo corpo e só eu fui convidado pra festa.

FIM

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