Capítulo I ao IV

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Acordei e me olhei no espelho ainda a tempo de ver meu sonho virar pesadelo

- Paulo Leminski

PRÓLOGO

A chuva grossa caia de forma incessante, encharcando as ruas de Nova York, escondendo as pessoas em suas casas e lavando a cidade para receber o sol. Adjra não tinha muito tempo, viajar com a criança da Índia havia se mostrado mais complicado do que ela imaginava. Perder seus mais fiéis seguranças era uma dor que ela ainda não se permitiu sentir, mas agora sozinha nas ruas da imensa metrópole, tudo que ela precisava era encontrar um local adequado para deixar o bebê.

A criança que estava enrolada em um manto vinho de veludo fazia alguns barulhos durante o sono, alheia ao fato de que seria separada de suas origens e do seu destino. Era o melhor que Adjra poderia fazer por ela, já que Eles não desistiriam tão fácil de encontrá-la, principalmente agora em que os maus ventos pareciam fluir sobre a Índia.

Depois de caminhar por tantas ruas da cidade, Adjra já sentia o peso da idade lhe caindo como um cobertor. O guarda chuva estragado pelo vendo, mal cobria a criança em seus braços e as pernas encharcadas e doloridas não conseguiam dar mais do que alguns passos cambaleantes. Ela tomou fôlego em uma esquina e pôs se a caminhar mais rápido, procurando um local adequado para a criança em seus braços.

É claro que não poderia ser nenhuma das mansões por qual ela passava, a chance da criança ser abandonada ou ser colocada em um orfanato era grande demais. Adjra precisava encontrar a residência certa, meio a tantos prédios e portões, para conseguir encontrar pessoas que realmente cuidassem da criança e a mantivessem em segurança.

Antes de viajar, Adjra escrevera uma carta de duas páginas explicando a natureza da situação. Pediu que a menina enrolada no manto, nunca se tornasse famosa ou muito conhecida, pois correria grave risco de vida caso isso acontecesse. Também pediu para que ela nunca suspeitasse que tivesse origens indianas, já que se buscasse por respostas poderia acabar sendo encontrada. O demônio não era tão poderoso ainda, mas era só uma questão de tempo até se fortalecer o suficiente para tentar encontra-la.

A chuva começou a diminuir e talvez aquilo fosse um sinal dos deuses, animada com a perspectiva de encontrar uma solução, Adjra caminhou mais rápido e ao virar a esquina avistou uma casa mais simples e de aparência bem cuidada, escondida em meio aos prédios da cidade. Um casal jovem podia ser visto pela janela, conversavam pouco na mesa de jantar e Adjra procurou por mais alguma presença na casa, mas percebeu que eram somente os dois.

Quando caminhou devagar até a porta da casa, se abrigou na varanda coberta e sussurrou alguns encantamentos para a criança, dentre eles retirou o poder de sonhar, pois temia que esta fosse uma forma de rastreá-la pelos sonhos. E isso poderia levar ser o fim para Adjra e todos aqueles a quem amava. Ao colocar a criança em cima do tapete úmido da porta, o bebê começou a se mexer e abriu os grandes olhos negros como piche para encara-la.

Adjra apressou-se em retirar a carta do bolso, um pouco umedecida pela chuva, mas ainda legível o suficiente. Colocou o papel embaixo da criança e envolveu um colar da flor de lótus em suas mãozinhas. Este último presente não estava programado, mas vendo aqueles olhos escuros como a noite encara-la com curiosidade, era impossível não deixar ao menos um vestígio de onde ela vinha, para conforta-la nos dias mais obscuros e talvez um dia leva-la para casa, quando ela pudesse viver em segurança.

Com passos cautelosos, Adjra caminhou para longe não olhando uma única vez para trás. Quando virou a primeira esquina, conseguiu ouvir o choro da criança e aguardou alguns segundos até que ele cessasse, garantindo que ela estivesse bem. Sem muitas alternativas, a senhora caminhou até uma ponte conhecida da cidade, alta e elegante a monstruosidade de concreto lhe arrepiava os cabelos, mas era sua única forma de voltar para casa.

O Homem No Espelho - DegustaçãoWhere stories live. Discover now