Capítulo 2

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  Depois de me dar banho, mamãe tirou os curativos dos meus ferimentos, como fazia todo dia, e me enrolou com um cobertor. Fiquei sentada em um banquinho no quintal,observando atentamente a grama crescer. Os analgésicos super fortes me deixavam idiotizada e serena. Esse ritual também servia para eu tomar um pouco de ar nos cortes.

  Só que o médico nos alertou que a exposição direta à luz solar era rigorosamente verboten, então, mesmo com a possibilidade mínima de alguém na Irlanda ser exposto ao sol em abril, eu usava um chapéu ridículo com abas imensas, acessório que mamãe usara no casamento de Claire, minha irmã. A sorte é que não havia ninguém por perto para me ver. {Nota pessoal: perguntas filosóficas do tipo "Se uma árvore cai na floresta e não há ninguém lá para ouvir o barulho, pode-se dizer que ela emitiu algum som?" e "Se alguém usa um chapéu de casamento perfeitamente idiota, mas não há ninguém lá para ver, pode-se dizer que ele é idiota?".) 

O céu estava azul, o dia razoavelmente quente e tudo me pareceu agradável. Ouvi Helen tossindo sem parar em algum quarto do andar de cima e observei, com ar sonhador, as lindas flores que balançavam na brisa para a direita e depois para a esquerda... Havia narcisos tardios, tulipas e outras florzinhas cor-de-rosa cujos nomes eu desconhecia. O engraçado, eu lembrei, quase como se flutuasse no ar, é que nós costumávamos ter um jardim horroroso, o mais feio da rua, talvez de toda Blackrock. Durante muitos anos o nosso quintal foi simplesmente um depósito de bicicletas enferrujadas (as nossas) garrafas vazias de Johnny Walker (também nossas), e isso exatamente porque, ao contrário de outras famílias mais decentes e trabalhadoras,tínhamos um jardineiro particular. Era Michael, um velho enrugado e de péssimo humor que não fazia nada, além de empatar o tempo da minha mãe. Ela ficava parada no frio ouvindo-o explicar por que não podia cortar a grama ("Os germes penetram pela ponta cortada, se instalam lá dentro e a grama morre todinha."); ou por que não podia aparar os arbustos ("A parede da casa precisa deles para servir de apoio, dona.") 

Em vez de mandá-lo ir catar coquinho, mamãe lhe comprava os biscoitos mais caros que encontrava e papai aparava a grama no meio da noite, para não ter de enfrentá-lo.Mas então papai se aposentou e encontrou a desculpa perfeita para se livrar de Michael.O velho não gostou nem um pouco e, em meio a pragas sobre amadores que destruiriam todo o jardim em minutos, foi embora muito indignado e arrumou emprego na casa dos O'Mahoney, onde cobriu nossa família de vergonha ao contar à Sra. O'Mahoney que uma vez ele vira mamãe secando um pé de alface com um pano de prato nojento. Deixem pra lá; o fato é que ele se foi e as flores, por mérito de papai, estão muito mais bonitas agora. A minha única reclamação é que a qualidade dos biscoitos na casa caiu drasticamente desde que Michael partiu. Mas não se pode ter tudo na vida, e essa percepção desencadeou pensamentos completamente diferentes. Foi só quando as lágrimas salgadas escorreram pelas minhas feridas e eu senti fisgadas de dor é que descobri que estava chorando. 

Queria voltar para Nova York. Nos últimos dias eu andava pensando muito sobre isso.Não apenas pensando, como também me agarrando a uma poderosa compulsão de cair fora, incapaz de compreender por que já não o fizera antes. O problema é que mamãe e o resto da família iriam ficar loucos quando eu lhes dissesse isso. Já podia ouvir seus argumentos: "Eu devia ficar em Dublin, pois é onde estavam minhas raízes, onde fui amada e onde eles poderiam 'tomar conta' de mim." 

Só que a versão da minha família de "tomar conta" não é como a de outras mais normaizinhas. Aqui em casa, todos acham que a solução para todos os problemas é comer chocolate. 

Ao pensar no quanto eles iriam protestar, reclamar e espernear. Precisava voltar para meu emprego. Precisava rever meus amigos. Além do mais(embora eu não pudesse contar isso para ninguém, pois me mandariam para o hospício),eu precisava voltar para Aidan.     

Tem Alguém Aí? - Família Walsh Vol 4Donde viven las historias. Descúbrelo ahora