O MITO DE LILITH NAS VERSÕES BÍBLICAS

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O mito de Lilith pertence à grande tradição dos testemunhos orais que estão reunidos
nos textos da sabedoria rabínica definida na versão jeovística, que se coloca lado a lado,
precedendo-a de alguns séculos, da versão bíblica dos sacerdotes. Sabemos que tais versões
do Gênesis — e particularmente o mito do nascimento da mulher — são ricas de contradições
e enigmas que se anulam. Nós deduzimos que a lenda de Lilith, primeira companheira de
Adão, foi perdida ou removida durante a época de transposição da versão jeovística para
aquela sacerdotal, que logo após sofre as modificações dos Pais da Igreja.
No Zohar, nos escritos sumérios e acadianos, nos testemunhos orais dos rabinos sobre
o Gênesis, encontramos tesouros preciosos e sugestões de extraordinário vigor para estimular
o nosso mundo imaginário. Quem abre pela primeira vez o Livro do Esplendor, ou aquele
precioso afresco que é o Beresit-Rabba, se sente repentinamente dominado por uma violenta
emoção e invadido de inquietude fascinante: é como se achar diante do testemunho ignoto da
verdade e da sabedoria, diante daquele que sabe dentro de cada um de nós, jacente no
inconsciente e que se reaviva e nos fala através de uma linguagem arcaica e potente escandida
na palavra hebraica.
Estes grandes testemunhos depositários da Torah (o Ensinamento) e dos Midrash (a
Procura) contidos na Misnach (coleção de Códigos) são certamente dos Rabis iluminados pelo
carisma e pela fé, mas são também os testemunhos de lendas, mitos, sagas, alegorias e usos
folclóricos populares, que os Rabis usavam como reflexão viva baseada em analogias para
estabelecer a verdade hermenêutica sobre as origens do mundo e do Homem. Nós acreditamos
poder dizer, hoje, que a sabedoria dos jeovistas e a leitura dos textos muito remotos nos
suscitam maiores energias e incitam à reativação dos arquétipos e mitos do inconsciente
coletivo, ao contrário do que o faz o depoimento sacerdotal.
A Torah assírio-babilônica e hebraica nos permite um jogo mais livre na interpretação
latente, nos restitui mundos imaginários que mais facilmente se subtraem à desconfiança
ditada pelo ceticismo racional, produto da sabedoria cristã e católica em particular. Não nos
interessa aqui, por exemplo, tentar a solução ou a sistematização da secular controvérsia entre
as duas versões ou criticar a destruição e as alterações consumadas nas Sagradas Escrituras
dos cristãos; o que nos guia não é o interesse teológico, mas o psicológico, pela redescoberta
da lenda de Lilith para agregá-la, como energia psíquica formadora do mito e do arquétipo, ao
núcleo concernente à história da relação entre Anima e Animus e para entender as origens
endo-psíquicas da cisão entre "instintivo" e "pensamento", para esclarecer, finalmente, o
grande equívoco do primado masculino sobre a mulher sentida como inferior. Toda a história
psicológica da relação homem-mulher, como diz James Hillman, é uma série de notas de
rodapé à história de Adão e Eva.13 Nada pode ser demonstrado racionalmente: a verdade sobre
a tradição primitiva e arcaica germinada na aurora do mundo não pode se achar nos pontos de
vista divergentes das duas escolas ou dos alinhamentos; a verdade está, para nós, além deles,
muito além, e num plano totalmente diferente. "Desde o início de sua criação, foi somente um
sonho", disse uma vez o Rabi Simon ben Laqish: e o sonho, para o homem, é a voz potente de
seu espírito e de sua profundidade interior.
No sonho não existe espaço para verdade ou inverdade, para a lógica ou a fantasia. No
sonho está o homem inteiro, com tudo aquilo que ele sabe conscientemente e com tudo aquilo
que ele não sabe e talvez possa não saber jamais. Se a criação e o próprio homem não são nunca outra coisa que um sonho, então esta é a sua indestrutível verdade. E tudo existe, como
existe o homem. Porque existe o homem que sonha.
Eis, portanto, porque os textos hebraicos, sumérios e acadianos têm uma chave e um
dissuasor que privilegiamos: neles há mais sonho, há o contar, há o vivido, há o imaginado.
Tudo, aqui, provém principalmente da boca do Rabi ou dos sonhos dos discípulos do que do
pensamento e do documento. E Lilith, para nós, nasce, talvez. do sonho ou da narrativa dos
Rabis, nasce de uma necessidade ou de uma fantasia coletiva.
Examinemos onde, nas Escrituras, se pode buscar a presença de Lilith como primeira
companheira. Ao que parece, muitos estudiosos e exegetas do Gênesis se encarniçaram na
procura de "provas" e até T. Reik, seguidor de Freud, para justificar o seu enfoque de Lilith,
saiu-se com esta rápida observação a propósito das duas versões bíblicas:

Lilith - A Lua Negra Where stories live. Discover now