Capítulo 4

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                Valira deslizava sobre o rio Succo como se fossem velhos amigos. Seu casco conhecia aquelas águas negras melhor do que ninguém, e os ruídos das aves amotinadas entre os galhos nos era uma canção bastante familiar. Meus olhos ardiam diante do ar gelado que fustigava meu rosto, mas nada era mais prazeroso do que aquela sensação de liberdade.

Por um breve momento – e esse prazer eu me permiti sem remorso algum – me esqueci do homem na Fumaça e, de pé no barco, abri meus braços, sentindo a lufada de ar entrar pela minha jaqueta e fazê-la tremular na parte de trás como uma bandeira. A sensação me fez gargalhar, e os pássaros responderam ao meu humor levantando voo e sobrevoando minha cabeça. Um pequeno grupo de garças bateu suas asas de plumagem alva, ganharam os ares por alguns segundos apenas para pousarem nas profundezas da floresta, em algum lugar aonde minha visão não poderia chegar. Olhei para a margem oposta, certo de que a alegria tinha um limite, e era até onde o Nevoeiro não tocava.

Os filetes de Nevoeiro pairavam na outra margem, como sempre, mantendo a Zona Segura fora de seus domínios. Valira deu uma guinada quando fez uma curva, e adentramos os domínios dos casebres abandonados. Aquela visão deu-me uma imediata consciência da minha máscara de gás, presa em segurança no suspensório da minha vestimenta. Coloquei-a imediatamente, prendendo a fivela no rosto. Num primeiro momento a viseira embaçou, e levou algum tempo para que me acostumasse com a sensação de ter o rosto prensado contra uma borracha com cheiro desagradável.

Nada havia mudado, exceto talvez o silêncio. A quietude era sólida, os movimentos mudos das folhas do manguezal pareciam uma dança desenhada pelo invisível assoprar do vento. As únicas coisas que se mantinham de pé a despeito das intempéries da natureza eram as casinhas abandonadas, flutuantes e vazias.

Desacelerei Valira, que pareceu gostar do descanso. Era quase impossível enxergar as coisas a minha frente, afinal, eu começava a adentrar o estômago do Vale da Neblina.

Senti o peso do diário de Ezah em meu bolso, e pela primeira vez senti-me consciente da lasca de memória perdida. Esfreguei as mãos uma na outra, tentando me aquecer, mas era apenas uma desculpa para não ter que pensar naquilo outra vez.

Quando se está caçando algo que não quer encontrar, os pensamentos podem ficar um pouco confusos, e era exatamente como eu me sentia. O medo era uma companhia discreta, e a curiosidade fazia barulhos engraçados, tentando-me a profanar o silêncio natural e gritar contra a figura misteriosa que nos assombrara no dia anterior.

Mas o medo cutucava-me o calcanhar, apenas para ter certeza de que eu não me esqueceria dele. O homem na Fumaça não deveria existir, especialmente ali, mas ele estava, eu o tinha visto. E pior. Eu tinha certeza, vendo-o naquela distância. Não era uma pessoa.

Happu e Mpofu não puderam enxergar com tantos detalhes como eu. Estou acostumado a visualizar movimentos por trás do Nevoeiro, afinal, naveguei algumas vezes por ali, e tenho certeza de que aquela forma etérea não era algo por trás da névoa densa. Era como uma sombra suspensa no ar, ela pairava entre as partículas do Nevoeiro. Explicar isso para Brona seria me atestar como louco, e eu não seria de muita utilidade estando louco.

- É como se ele estivesse... Tentando existir – pensei comigo, mas talvez Valira estivesse me ouvindo.

Hesitei. Olhei de um lado a outro, tentando encontrar a figura. Poderia ser coisa da minha cabeça, poderia ser uma pessoa. Claro! Tinha que ser. Faria muito mais sentido. Onde eu estava com a cabeça? É óbvio que havia alguém ali, talvez com uma máscara ou dispositivo similar, o bastante para passar despercebido, era muito mais lógico, e por um breve momento acabei admitindo ser um completo idiota.

Rio SuccoWhere stories live. Discover now