capítulo DEZ

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A VIAGEM FOI tranquila. Não preguei no sono nem por um segundo; meus olhos fitavam a estrada, os pensamentos em mergulhos profundos, era como se eu vivesse uma epifania.

Foi como sentir a Ana morrendo, uma nova surgindo. Foi demais para mim. As férias acabaram para você, Ana Lúcia. Foi tudo muito rápido, mas as coisas acontecem dessa forma. As vezes a vida é mais rápida do que a gente pensa que possa ser, a gente muda e nem percebe.

A vida é essa loucura, feita de momentos, de capítulos curtos.

Mas nada foi em vão.

Antônio não conseguiu tirar minha dignidade, e me deu algo em troca, aliás. Algo que não imaginara possível antes, algo que nem sequer sentia falta.

Eu havia ganhado juízo, um estalo dentro da cabeça. Foi como se uma luz houvesse sido acendida dentro de mim, um espírito renascido. Por um lado, me sentia com medo, não parava de pensar no que poderia acontecer com Thomas, e em como a cara de Antônio estava desfigurada, como deveria estar inchada, o nariz partido em pedacinhos. Quem sabe até alguns dentes faltando.

Mordi os lábios, abri o vidro, senti o vento se esfregar pelo meu rosto. Era como se me visse viva pela primeira vez. Uma sensação estranha.

Estava ansiosa pela nova Ana, e até mesmo Eron saíra de meus pensamentos. Agora parecia tudo irrelevante, uma parte idiota da vida.

O motorista desta vez era uma mulher, já pelos quarenta e tantos anos, simpática, gostava de uma boa conversa. No entanto, permanecemos em silêncio por quase todo o trajeto, ela parecia notar minha expressão abalada, e preferiu me deixar com o silêncio.

Seu nome era Juliana, e paramos para comer e fazer xixi mais de sete vezes; acho que ela tinha um probleminha na bexiga. Quando estávamos perto de chegar à minha cidade, senti um calor sobre o peito, via aqueles prédios com alegria, era bom estar em casa outra vez.

Ver a Emily fizera bem para mim, a praia era sempre um bom lugar para refrescar a alma. Com toda a certeza jamais esqueceria os eventos que se sucederam naqueles dias. Mas era hora de voltar à vida... esquecer o Thomas, a conexão que tivemos... agora era passado. Bola pra frente, Ana Lúcia!

Minha mãe me recebeu com cara de surpresa e espanto, não havia dito que estaria de volta, e durante a viagem não me passara pela cabeça o que diria a ela quando chegasse.

— Posso saber o que está havendo aqui? — perguntou minha mãe sobre a porta do meu quarto, a toalha da louça jogada sobre ombros, minha mala espalhada sobre a cama.

— Quis voltar mais cedo — respondi, jogando-me sobre os lençóis. — Conheci um pessoal lá não muito legal, rolou um climão, aí preferi voltar. Não foi nada demais, na verdade, eu me diverti bastante, mas sei lá, quero ficar por aqui mesmo.

— Tem certeza, filha?

— Tenho sim, mãe, não se preocupa. Você me conhece... sabe como mudo de ideia — bocejei. — Acho que vou dormir um pouco, a viagem foi meio cansativa. Podemos sair todo mundo mais tarde? Estava com saudade de vocês.

Minha mãe levantou o sobrolho.

— É, você não tá nada bem. O que aconteceu lá? Por que não ligou? Chega aí de surpresa e nem diz nada! Perdeu o juízo, mocinha? Parece criança!

— Eu revi um antigo amigo, mãe — suspirei, inventei algo na hora. — Foi isso... eu gostava dele, sabe, e aí ficamos, e descobri que ele tinha namorada... as coisas ficaram feias por lá. Decidi que era melhor ir embora. Fiquei com vergonha de contar, tá bom? Foi isso...

Minha mãe permaneceu em silêncio, enxugou a testa com a toalha e suspirou.

— Tudo bem, filha. Essas coisas acontecem... mas podia ter ligado, não é?

— Podia. Foi mal, na hora eu nem lembrei disso... desculpa.

— Tá desculpada — ela meneou a cabeça para os lados. — Bom, vou deixar você descansando aí, ok? Depois conversamos melhor.

E a porta se fechou e a escuridão me engoliu. Fitei o negrume do quarto por um bom tempo antes de pegar no sono, os pensamentos não me saíam da cabeça...


Será Que é Desejo? (HISTÓRIA COMPLETA)Where stories live. Discover now