Ambíguo

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Cosette caminhava a passos largos e apressados que ecoavam quando os pequenos sapatos pretos encostavam nas pedras de paralelepípedos da viela. O farfalhar da saia e babados roçando em sua perna tornara-se rítmico deixando-a cada vez mais frustrada. Pequenas gotículas de suor se faziam em sua testa, ela tentou em vão seca-las com as costas das mãos, mas o embrulho que carregava ameaçou cair de seus braços. "Maldito bonnet! Como esquenta esse chapéu!"

A garota não deveria estar ali caminhando pelas vielas, ainda mais pelo horário, já passara do crepúsculo, grande parte dos estabelecimentos mostravam a placa de "fechado" em suas vitrines, os lampiões começavam a ser acesos nas ruas, os bordéis acendiam suas luzes... Realmente não era hora para a jovem de cabelos negros estar vagando. Mas o que poderia fazer? Ela não imaginava que sua irmã fosse demorar tanto na casa da amiga e ainda por cima que fosse manda-la voltar para casa sozinha levando os vestidos que comprara. Suas pequenas mãos suavam frias sob as luvas brancas de cetim. As bochechas antes pálidas, tomavam agora um tom levemente corado pelo esforço da caminhada.

A lua erguia-se aos poucos no céu, alertando-a o quanto o tempo estava avançando. "Apenas mais três quadras, apenas isso." Ela dizia mentalmente para si mesma enquanto virava à esquina e para seu total desagrado, aquela viela estava mal iluminada quase a engolfando nas sombras.

Então o sangue fugiu de seu rosto, a pulsação tornou-se acelerada, a respiração sôfrega. O céu caíra em seu estômago dobrando-o e desdobrando-o, embrulhando-o e desembrulhando-o, pois tamanho era o seu receio e ansiedade ao ouvir passos precisos a uma distância considerável de si. Poderia ser qualquer um naquela hora, no entanto sabia ser um homem, por causa do som que os sapatos masculinos faziam nas pedras de paralelepípedo, o mesmo som que os sapatos de seu pai faziam ao caminhar. Mas tinha quase certeza de que aquele atrás de si, não era o pai. "E se for um ladrão?" Logo algo pior passou por sua cabeça fazendo-a suar frio, Cosette ouvira os boatos tenebrosos sobre o terrível assassino que ousava tirar as entranhas das cortesãs deixando-as sob o relento da noite escura para que policiais as encontrassem. "Quem em sã consciência faria tal atrocidade?" Seus olhos varriam as ruas disfarçadamente, não havia sequer resquício de luz sob as persianas daquelas casas, nem uma alma viva nas ruas. A garota estava cada vez mais nervosa, sentia o suor escorrer pelas costas. O estranho continuava a segui-la sem diminuir a distância. Ela não ousava virar-se para fitar quem a seguia. Aumentou o ritmo da caminhada até suas pernas arderem, até suas panturrilhas pesarem. Como se pudesse ler seus pensamentos, o estranho apurou os passos também, diminuindo gradativamente o espaço entre os dois.

Os olhos cinzas da menina estavam vidrados no portão de sua casa que estava a apenas alguns metros de distância. As lágrimas ameaçavam transbordar do olhar aflito, sentia a desolação espreitar seu peito a cada passo que o estranho se aproximava dela, Cosette mal aguentava o mal-estar que se apossava de seu corpo, revirando seu estômago, a deixando enjoada, as pernas em um misto de solides e bambeio.

Estava a apenas alguns metros tortuosos do portão de sua casa. Precisava correr, a tensão gritava aos seus ouvidos silenciosamente, tão denso era o ar que quase a empurrava de encontro a sua propriedade. As pernas estavam decididas a iniciar o movimento frenético, tão decididas que Cosette já havia começado a dar o primeiro passo, mas logo seu ombro sentiu o peso do toque de uma mão firme e grande acompanhado de uma voz forte e imponente.

- Senhorita.

O corpo aterrorizado da garota sentiu o calafrio percorrer em cada célula de sua pele, as têmporas já estavam ensopadas pelo suor e as luvas colavam-se nas mãos frias. Cosette obrigou-se a engolir o nó presente em sua garganta e reuniu todo o resto de seu bom senso e virou-se para encarar o indivíduo.

Um homem mediano no auge da sua juventude a olhava de volta com expressão enigmática.

- Perdão incomoda-la, mas creio que isto é seu.

Ele estava com a mão estendida mostrando um dos pacotes onde estava o vestido de sua irmã, Cosette olhou perdida para as próprias mãos e estava segurando apenas o pacote com seu vestido embrulhado. A confusão se fazia presente em sua expressão, o tempo parou naquele instante para a garota, e então tudo pareceu fazer sentido. Ela sentiu o ar esvaziar seus pulmões em alívio, a pressão arterial de suas veias diminuíram quase lhe causando vertigem, seus músculos antes tensos, agora finalmente relaxaram. Ela sorriu para o homem.

- Ora vejam só como sou atrapalhada, muito obrigada senhor. - Ela pegou o pacote das mãos do homem.

- Não por isso. – Ele disse sorrindo para ela, fazendo-a perceber um charme que antes estava escondido nas curvas dos lábios dele. O homem virou-se em um movimento elegante na direção do mesmo caminho que haviam vindo, e se pôs a caminhar.

Cosette abriu o portão e antes de dirigir-se a porta de sua casa, olhou na direção da rua onde o homem deveria estar caminhando, mas não viu ninguém mais ali, percorreu o olhar por todas direções, só havia ela ao lado de fora na rua. A ausência do desconhecido provocou-lhe uma sensação estranha e incômoda, um quase medo.

Não esperou mais seja lá o que estivesse esperando, ainda perturbada dirigiu-se a porta de casa, destrancou-a, entrou e a trancou novamente.

AmbíguoWhere stories live. Discover now