Anzolpidem

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Olhando através daquela parede invisível que lhe rodeava, meus olhos esbugalhados viam toda a magnificência de outras pequenas réplicas de lagos contidas em cubículos e esferas quase invisíveis. A vida de todos os peixes dourados parece escrita pelo lago onde vive.

Nasci em um lago japonês chamado Jinyang. Era um dos menores ovos de peixe que minha mãe pusera se comparar aos meus outros 1000 irmãos. Aquele dia em especial foi espetacular. A película que me protegia rompeu e pela primeira vez, vi a luz do sol com mais clareza.

Era estranho aquele novo mundo. Havia centenas de outros iguais a mim com seus olhos esbugalhados me olhando e conhecendo aquele novo mundo, todos erámos estranhos.

Primeiramente entenda: animais possuem sim consciência das coisas, os humanos pensam que não, mas temos. A evolução lhes deu status que ele usaram para impor sua vontade contra os demais e assim se classificaram como o topo da cadeia alimentar, os seres racionais.

Julgaram-nos irracionais apenas por medirem nossa capacidade cognitiva com base em feitos humanos como falar, produzir arte, mudar o mundo o industrializando. Sim, todos duvidam de nós, animais, com base em parâmetros próprios, criados por humanos, que não medem nosso potencial.

Não devia haver parâmetros para se julgar algo, mas até nós animais sucumbimos a isso. Eu não seguia o cardume. Todos eram belos peixes com cores douradas maravilhosas enquanto eu, bom, eu, apenas, tinha uma tonalidade mais escura de dourado. Tentava socializar, tentava ser amigo de peixes dourados de outros cardumes, mas sempre era excluído.

Eu nadava contra a maré, apesar de viver em um lago. E isso foi somente nos primeiros dias de vida. É difícil tentar ser um peixe dourado não tão dourado quanto os demais. Não me enturmava, logo tudo que havia por vir na minha vida seria problemático.

Tentei passar musgo em minhas manchas não tão douradas para ver se elas reluziam, mas além de não me sentir bem com isso, virei motivo de mais exclusão. O peixe escuro de musgo cairia bem para me definir. Meus únicos amigos eram a família e isso não era um problema para mim, mas para meus pais e para os demais cardumes, era algo errado.

Meus mais de 1000 irmãos e meus pais sempre me empurraram para a perigosa aventura da socialização com peixes que queriam que me assemelhasse a eles. Durante tudo isso, continuei a me esfregar no musgo que nascia nas pedras para brilhar. Todos querem brilhar, isso está mais que claro, somos peixes dourados. Mas eu não queria, gostava da minha cor, mas para agradar meu cardume, fiz esforços.

Curiosamente, o musgo que usava para me dar brilho, antes me dava pouquíssimo brilho, agora, me deixava sujo. Às vezes eu ficava completamente preto, porém a água me limpava em minutos.

A chacota não parava. Quanto mais eu tentava ser igual aos outros, mais eu me sentia menos eu. Com o passar do tempo, aquele sujo escuro começou a deixar a água incolor com aspecto fúnebre. Não demorou muito para que peixes de outros cardumes começassem a morrer. A morte é natural, apenas quando decorre da idade, fora isso, não é natural.

Eu senti a dor que os cardumes dos peixes mortos sentiam. Apesar de não me socializar, eu conhecia o sentimento de empatia. Sabia que se algum irmão ou um dos meus pais morressem, eu sentiria o mesmo que eles sentiam. E eu senti. A empatia que tive por eles por potencializada e multiplicada ao extremo quando meu primeiro irmão morreu.

Sofremos muito e mal tivemos tempo de nos recompormos e o segundo morreu, depois o terceiro, depois o quarto. Foram morrendo, um a um, não só do nosso cardumes cômodos outros. Depois de algumas semanas, quase dois terços da população do lago havia morrido. Eu, meus pais e mais ou menos 200 irmãos sobrevivemos de nossa família. As demais estavam sofrendo perdas.

Anzol & ZolpidemWhere stories live. Discover now