ELA

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Bati o cartão o mais rápido o possível, eu não queria esperar o ônibus junto com a Sandra, ela era encrenqueira demais e fofoqueira demais. O meu plano era ir até o ponto da rua de cima e pegar o ônibus circular de lá, ao invés de pegar o ônibus em frente do mercado.

Já estava tarde, quase 22:30, soltei os meus cabelos e os deixei caírem no meu ombro, me despedi do João um dos seguranças da área de serviço e corri pelo estacionamento. Enquanto os meus passos se apressavam encolhi-me no moletom vermelho da Gap que cobria o meu uniforme cinzento horroroso. O inverno estava chegando e com ele as noites frias e o céu pálido. Eu adorava o inverno, mas não gostava de trabalhar a noite e ter que usar o dobro de agasalhos. Concentrei-me no meu objetivo, eu precisava daquele emprego, eu tinha um bom salário, não era muito, mas com ele pelo menos eu conseguia guardar uma quantia razoável no banco. Fazia dois anos que eu trabalhava no mercado, e faltava pouco para eu conseguir comprar uma prótese nova, pelo menos um encaixe novo.

Quando eu perdi a minha perna direita há 6 anos e sofri uma amputação transfemural foi difícil me acostumar com a prótese. O encaixe era rígido linear de silicone, o joelho hidráulico 3r80, e o pé de fibra de carbono foram comprados com a indenização que o motorista que me atropelou pagou para que o caso fosse abafado pela mídia. Com o passar dos anos a prótese foi se desgastando e incomodando o meu coto, e eu precisava urgentemente de um encaixe novo e havia até entrado com o pedido no SUS, já que agora não tinha mais o dinheiro do filho da mãe que me atropelou. Eu precisava de uma prótese nova. Na verdade, eu queria nascer de novo, com duas pernas.

Enquanto eu subia e observava os vários tons de cinza embriagando o céu, caminhei no meio da rua deserta. Nenhum carro passava ali, mas eu desejei que passasse e que me atropelasse, porém desta vez eu desejei que fosse a minha cabeça sendo esmagada pelas rodas e não a minha perna, eu quis mesmo que fosse o meu corpo sendo partido ao meio, vislumbrei o meu sangue se espalhando pela rua, pelo asfalto frio. Minha vida era tão insignificante que se eu ganhasse uma pequena nota no jornal notificando o meu falecimento já seria muito. Sorri para a minha própria insignificância. Ás vezes eu fechava os olhos e imaginava estar morta, imaginava o meu enterro, o meu corpo frio e sem vida dentro de um belo caixão de madeira e a minha própria insignificância indo embora, porque agora eu não existia mais, não havia mais vestígios da Natasha invisível.

Suspirei em meio aos meus pensamentos mórbidos, chutando com a minha única perna de verdade as pequenas pedrinhas que adornavam o chão. Então eu notei que eu não estava sozinha, o vento trouxera para as minhas narinas um cheiro amadeirado e forte, olhei por cima dos ombros e uma sombra de arrependimento pairou no meu rosto, eu não queria ser assaltada. Mas então eu o vi, era o misterioso cliente que havia passado mal logo atrás de mim. Havia algo de errado nele, o jeito que ele me olhava me fazia estremecer, ele estava me seguindo? Virei o rosto depressa e me obriguei a andar mais rápido, ele me seguiu na mesma velocidade e eu podia ouvir os gemidos de dor saindo da sua boca. Quando cheguei no ponto de ônibus eu tremia, meus lábios empalideceram, e eu estava com calor. Senti uma vontade louca de arrancar o moletom vermelho, mas respirei fundo e sentei no banco frio, rezando para que o ônibus chegasse logo.

Ele sentou do meu lado, olhei para ele de esguelha e notei seus olhos negros em cima de mim, duas órbitas em chama encaravam as minhas pernas e depois o meu rosto. Fui me encolhendo, me sentindo mais pequena do que eu já era, eu costumava usar um tênis no meu pé falso, assim em um primeiro momento as pessoas não perceberiam que faltava uma parte de mim, que eu não tinha uma perna e que parte da minha alma foi embora junto com ela. Tentei manter os olhos em algum canto da rua, mas eles piscavam freneticamente e não me obedeciam, a todo momento eles desviavam e espionavam aquele homem estranho, o que ele fazia aqui? E por que me encarava daquele jeito?

Enchi de ar os meus pulmões, apertei a minha bolsa contra o meu peito, ele não era um ladrão, eu sabia disso porque se fosse já teria me assaltado, já teria derrubado o meu corpo pequeno no chão e arrancado a minha bolsa de mim. Ele parecia ter dinheiro, eu sabia reconhecer um perfume caro de longe e o dele com certeza havia custado a metade do meu salário, bem diferente das colônias simples que eu comprava nos catálogos de perfumes baratos.

Olhei para o céu cinzento, suspirei profundamente, tão alto que ele me ouviu, pois, seus olhos olharam no fundo dos meus, me senti nua diante dele. Levantei em sobressalto assustada com aquele homem, quase sussurrei para que ele me deixasse em paz, fiquei em pé apoiada no poste. Ele levantou também e parou do meu lado, lhe lancei um olhar frio franzindo o cenho, ele arregalou os olhos e abaixou a cabeça envergonhado colocando ambas as mãos no bolso.

Então graças a Deus o ônibus apareceu, eu acenei para o motorista parar e assim ele o fez. Respirei aliviada ao entrar no ônibus e depois passar pela catraca. Sentei-me no fundo, na janela, mas quando olhei para frente meus olhos colidiram com os olhos dele, agora em pé apoiado em um dos bancos. Abaixei a cabeça e senti um rubor crescer no meu rosto. O que ele queria comigo? Não pude descobrir, pois logo o ônibus chegou no meu ponto e então eu desci e caminhei até a minha casa sozinha.

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Até amanhã!! Convidem as amigas e os amigos para lerem o livro! Beijos <3

Ainda Não AcabouWhere stories live. Discover now