Capítulo 4

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O bullying era motivo de união entre a sala, os vários grupinhos agora tinham um assunto em comum. Mesmo as pessoas com quem nunca tinha conversado, sentiam-se no direito de apontar minhas falhas, o que mais me incomodava era o fato de falarem que eu tinha hálito de peixe. As pessoas se convenciam de uma forma, que passavam a sentir o cheiro em mim. Desenhos circulavam de mão em mão, musiquinhas eram inventadas, meu nome tornava-se xingamento entre eles. Cabia a mim a reclusão, entrar e sair quieta, desistir daqueles com quem acreditava estar criando vínculos. Em uma das trocas de aulas, avistei Alexandre e o quarteto cochichando perto do bebedouro, assim que me aproximei eles emudeceram, as faces continham escárnio. Escutei a risada de cada um ao me virar e retornar para a sala. Estava confirmado o meu cheiro de peixe.

Voltei a frequentar a biblioteca, Maria Clara havia terminado o livro Divergente e começara a ler Fallen. Sentei-me na mesma mesa que ela e fiquei em silêncio, na espera de que ela puxasse assunto. Não aconteceu. Fui a Juliana perguntar se ela gostaria de ajuda para guardar os livros, ela me entregou uma pilha e nada mais. Eu precisava contornar aquela situação, ou me veria sem qualquer apoio como antigamente. Cogitava revelar para algum adulto o que se passava, falar com Juliana não trouxe qualquer resultado. Fui, então, a sala da coordenadora, ela me escutou, presenciou minhas lágrimas, para depois chamar os nomes por mim apontados. Seu trabalho de educadora resumiu-se a fazer-nos dar um caloroso abraço de reconciliação. Os pedidos de desculpa eram forçados, assim como as promessas vazias. Todos temiam uma advertência, suspensão ou o envolvimento dos pais. Já estava arrependida da minha decisão, os estudantes passaram a ignorar minha presença, não respondiam a simples perguntas como "Você sabe o que cai na matéria da prova de sexta?", ou "Você tem um lápis sobrando para me emprestar? Minha caneta ficou sem tinta". Era como se eu não mais existisse, vagasse morta por aqueles corredores abarrotados de jovens entusiastas, minha presença os assombrava, temiam ser processados. E pensar que eles seriam os futuros médicos, advogados, professores e engenheiros.

A perseguição continuou de forma mais elaborada, durante o recreio jogavam algum material do meu estojo pela janela, não mais deixavam que eu copiasse o exercício de matemática que deveria ser entregue todas as terças-feiras. Certo dia, dormi na aula de história, era o último o período, a sirene tocou, todos saíram da sala e rumaram para suas casas, inclusive o professor. Acordei as duas da tarde com uma funcionária da limpeza cutucando meu ombro. Voltei destruída para casa, aproveitava as tardes para chorar, assim mamãe não me submeteria a um interrogatório. Se ela procurasse a diretora do colégio, seria o fim para o mim.

Mamãe acabou na sala da coordenadora, visto que a diretora somente aparecia nos dias de festa. Não ia pelos motivos imaginados, nosso professor de literatura solicitou que lêssemos Os Sofrimentos do Jovem Werther durante as férias, como seria cobrado na prova, pedi que mamãe o comprasse para mim. Ela foi contra, conhecia a história sombria que marcava a publicação daquele livro, quando vários jovens motivados pelo personagem Werther, tiraram suas vidas há séculos atrás. Tentei argumentar, dizer que os dias eram outros, assim como a mentalidade das pessoas. Ela insistiu, não deixaria que adolescentes sofressem a influência daquele texto. Na mesma semana apareceu no colégio de surpresa. O professor foi chamado, e o livro substituído por A Revolução dos Bichos. Enquanto explicava o acontecido, carregava de sarcasmo seus comentários. Todos, intimamente, suspeitavam de mim. A palavra moreia ganhou a boca de dois ou três alunos, o professor nada fez, apenas virou-se para o quadro e escreveu um resumo sobre O Cortiço.

E pensar que até os alunos do ensino fundamental sentiam-se no direito de me agredir verbalmente. As amigas de Alexandre agora retiravam-se quando eu me aproximava. Sempre que via duas pessoas conversando baixo, já suponha ser eu o assunto. Sentia-me perseguida, ficava paranoica. Não mais comprava comida na hora do recreio, evitava a fila da cantina, ficava em sala até que todos tivessem descido e, só depois, corria para a biblioteca. Não mais frequentava a quadra de esportes ou tomava sol. Juliana não mais tentava me consolar, apenas escutava a tudo enquanto lia fofocas sobre famosos na internet. Ao menos Maria Clara voltara a me procurar. Nossa amizade era restrita ao período matutino do dia. Eu me afastava dos meus amigos de fora, ou talvez eles quem estivessem se afastando de mim. Como culpá-los? Minha presença era carregada, eu sempre tinha algo para reclamar, alguém quem demonizar. Eles não mais viam vantagem em me ter por perto.

E então, na última semana de aula que precedia as férias de julho, Maria Clara decidiu se abrir para mim, contar o porquê do seu silêncio tempos atrás. Sua vida não mais tinha sentido, ela estava, deliberadamente, se afastando de todos, perdendo importância, pois assim não sentiriam o baque quando descobrissem sua morte. Eu fiquei paralisada, desejava que alguém interrompesse aquela conversa, tirasse de mim a responsabilidade por ser ouvinte daqueles planos. Mas ela continuava, com seu miado assustado, implorando para ser ouvida. Por mais que me agoniasse, continuei a escutá-la, continha minhas lágrimas, tentava transparecer calma e solicitude. 

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